Sexta-feira, Fevereiro 2

Sexta-feira, Fevereiro 2

Espumante

O pateticamente laborioso Henrique Raposo (que um dia conhecerei fisicamente), depois da arrasadora observação de que os partidários do Sim estarão demasiado " entretidos na guerrilha anti-não" (uma crítica tão poderosa e profunda que faz lembrar o já mitológico Diogo Almeida ), questiona, com o ar fundamental que lhe é ridiculamente familiar, as dúvidas que pairam sobre um eventual cenário pós-referendo em que o Sim saia vencedor.

"Como é que a lei será aplicada na prática? ", questiona Henrique Raposo, semeando a dúvida e a indecisão como quem planta silvas. "Será como na Alemanha ou como na Dinamarca (dois enquadramentos legais que me parecem equilibrados)"? É que, bem vêem, Henrique Raposo estudou não só o " equilibrio" dos "enquadramentos legais" da Alemanha e da Dinamarca, como, a avaliar pela sua preocupação inicial, a própria "aplicação prática" dos referidos "enquadramentos legais " em concreto e em cada um dos países citados.

Em Portugal mal se sabe a exacta medida em que uma lei ridícula, estúpida, obscura e ignorada por todos não é aplicada, mas os planetários conhecimentos de Henrique Raposo só lhe chegam para questionar se a lei que, com o Sim a este referendo, se quer tornar possivel, será aplicada da mesma maneira que na Alemanha e na Dinamarca.

Se este blogue fosse outro, eu respondia-te ao "I like to get kissed before I get fucked." Infelizmente, a censura, a limitação das liberdades individuais e a estrita restrição da sodomia são uma norma neste espaço.

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Bagão e o direito de Mafalda

Consternada pelo lapso de Bagão, Mafalda veio em sua defesa. Afirma, em síntese, que o Código Civil, no direito sucessório, reconhece direitos ao nascituro, embora este ainda não tenha personalidade jurídica, porque essa depende do nascimento completo e com vida, nos termos do artigo 66.º do Código Civil.

Quero aqui deixar, antes do mais, uma palavra sobre Bagão Félix. Apesar da linguagem um pouco truculenta, reconheço, sem dificuldade, que só falei em burrice para não falar em fanatismo. Que pode levar um homem com formação académica superior, que já foi ministro, a ler a expressão "nascituro não concebido" e pensar que se está a falar de um embrião? Apenas uma coisa: o fanatismo. Bagão Félix estava a ler, mas tinha o espírito aprisionado pela sua cisma anti-IVG. Mas é isto que torna pouco credível o discurso dos adeptos do "Não"!

Com raras e honrosas excepções, são pouco lúcidos. Confundem argumentos, mentem no plano científico e acabam mesmo na confabulação pura. Ainda os ouviremos dizer, antes do referendo, que conhecem fetos de dez semanas que são compositores, romancistas ou alpinistas. E temos de lhes fazer justiça — eles acreditam mesmo no que dizem.

Em comparação com Bagão, a Mafalda é mais cerebral. Refugia-se na linguagem do direito para dizer umas tretas com pretensão técnica. Mas há que reconhecer que é pouco imaginativa. Eis o fado completo da Mafalda:

    1.º Começa sempre por fazer uma profissão de fé contra o legalismo;
    2.º Depois, vai à lei buscar umas normas que interpreta mal e não enquadra sistematicamente;
    3.º Conclui triunfantemente o silogismo, defendendo um princípio geral.

Nesta última parte, a Mafalda vai ao direito das sucessões procurar no conceito de "capacidade sucessória passiva" apoio para a sua tese, segundo o qual o feto tem direitos, mesmo antes de ter personalidade.

É claro que a Mafalda não compreendeu que é um absurdo jurídico dizer que alguém tem capacidade antes de possuir personalidade. A personalidade é condição da "capacidade de gozo" e da "capacidade de exercício". Sem personalidade jurídica, ninguém pode ser titular de direitos ("capacidade de gozo") ou exercê-lo por si mesmo ("capacidade de exercício").

Aquilo que o Código Civil contempla é um direito que é projectado na esfera jurídica de alguém ou logo que ele nascer. Trata-se de uma espécie de expectativa ou direito sujeito a condição suspensiva (só surgirá na ordem jurídica se e quando o seu destinatário nascer).

É claro que a conversa de Bagão é especialmente hilariante, porque ele, utilizando a mesma linha de raciocínio da Mafaldinha, levou o Código Civil ainda mais longe. Concluiu que, uma vez que se afirma que os "nascituros não concebidos" podem ser contemplados em testamentos (têm "capacidade sucessória passiva"), então são já titulares de direitos. Pequeno lapso lógico: como os "nascituros não concebidos" não existem, é difícil sustentar, sem provocar uma risada alarve, que eles têm direitos.

Mas, na opinião da Mafaldinha, estamos em presença de minudências (o "legalismo"). A Dr.ª Mafalda é que sabe. Faz uma interpretação restritiva da norma, dá como não lida a expressão "não concebidos" e conclui que os nascituros já têm direitos mesmo sem personalidade jurídica. Com uma ajuda deste peso, é de recear o pior. Lá para o fim da campanha, o guru Bagão, "colaborador especial" do blogue da Mafalda, voltará a empunhar o Código Civil para provar que os concepturos que nunca chegam a ser concebidos também têm direito à vida!

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Coisas simples

Além do mais, no plano político, esta parece-me das mais graves rendições da esquerda: a aceitação tácita de que o mundo, afinal, não é transformável e que, portanto, em nome da "falsa tolerância" de que falava Pasolini, o melhor é facilitar. Jacinto Lucas Pires

Segundo a Associação para o Planeamento da Família, em 2005 realizaram-se cerca de 17 500 abortos entre as portuguesas (PDF) . Fiquei sem perceber exactamente quantos destes abortos foram ilegais (ou clandestinos). Presumo também que o "Não" conteste estes dados*. Por isso vou cortar os números pela metade - o que é um escândalo para o "Sim" - e assumir que em 2005 se fizeram apenas 8750 abortos clandestinos entre as portuguesas. Admitindo que em 2007 o valor não se alterará e esquecendo as flutuações (para efeitos de estilo), na manhã do dia 12 de Fevereiro de 2007 cerca de 24 portuguesas estarão na iminência de fazer um aborto clandestino. Ganhe o "Sim" ou o "Não", estas mulheres vão abortar.

É impossível saber quantas mulheres nesse dia estarão apenas a ponderar fazer um aborto, as homólogas - digamos - das que em 2005 também consideraram essa hipótese mas optaram por continuar a gravidez. Uma das preocupações do "Não" é que ganhando o "Sim", estas mulheres mais facilmente serão tentadas a abortar. Mas não é essa a conclusão - ou não é uma conclusão peremptória, em todo o caso - que podemos tirar ao olhar para os números que temos apresentado sobre países que aprovaram há muitos anos a lei agora em discussão.

Não se percebe pois de que transformação se abdica. Como não se percebe que JLP veja no "Sim" a rendição da esquerda. Não será certamente por isso que a causa junta também tanta gente da direita. Só a referência a Pasolini me parece luminosa. Porque se continuamos sem conhecer a argamassa que une o "Sim" , aquilo que agora junta marxistas (como Pasolini) e liberais (como, por exemplo, César das Neves) só pode ser o Catolicismo. Há então razões para parafrasear JLP e perguntar se não estaremos perante uma das mais graves rendições dos católicos: a aceitação tácita de que para preservar a sua influência a Igreja não é transformável, ainda que assim comprometa os valores da compaixão que professa, e que, portanto, em nome da fanática intolerância, não perceba que o "SIM" à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, dentro das dez semanas, é contra o sofrimento das mulheres redobrado com a sua criminalização [e] não pode ser confundido com a apologia da cultura da morte , como falou Frei Bento Domingues. Nem com facilitismo.

* Juntar ao dossier IVG-Teoria da conspiração

Um tiro na água (sem nenúfares nem lilases)

Na campanha do Não, já se percebeu, vale tudo. Demagogia a rodos, deturpações científicas, chantagem moral, terrorismo religioso e muita areia atirada para os olhos dos mais distraídos. O caso mais recente foi a publicação, no BdN, de um poema de Jorge Sousa Braga . Como resposta ao escândalo em torno da repugnante Carta à minha Mãe, Helena Ayala Botto e Eduardo Nogueira Pinto quiseram mostrar que nem só os padres obtusos imaginam fetos (ou bebés/crianças/futuros Beethovens, como já houve quem lhes chamasse) em monólogos dirigidos às respectivas progenitoras. Também um poeta reconhecido, vejam lá, recorre ao mesmo estratagema. E logo com versos de um profundo lirismo, sobre um feto (ou bebé/criança/futuro Beethoven, como já houve quem lhe chamasse) que não é abortado e nasce na última estrofe, ficando a uma distância da mãe que "não se mede em centímetros" mas "em lilases".
Acontece que o post é de uma tremenda desonestidade intelectual. Primeiro, porque compara coisas que não são comparáveis (o opúsculo obscurantista e o poema). Depois, porque ilude o leitor, fazendo-o acreditar que Jorge Sousa Braga perfilha, tanto na teoria como na prática (através dos seus versos), as ideias propagandeadas pelo campo do Não. Ou seja, sem ser tido nem achado, o autor de Amanhã Vamos Todos Acordar com uma Pérola no Cu viu-se subitamente instrumentalizado por uma causa da qual discorda em absoluto.
Há questão de umas horas, falei com ele para confirmar o que já presumia: ginecologista e obstetra, o Jorge sempre foi e continua a ser apoiante do Sim. Informado do abuso, disse-me não ter paciência para escrever um desmentido, nem sequer em tom irónico (ou recorrendo a um dos seus elegantes haikus), por estar farto do "ruído" que estas campanhas sempre provocam, mas autorizou-me a desfazer o grosseiro equívoco. E acrescentou: "Podes pôr no vosso blogue que, para mim, a penalização das mulheres que abortam é um triste sinal da imensa hipocrisia que subsiste no nosso país."

Não é só o uso vocabular que é tudo menos "inocente"

Lembram-se, com certeza, do artigo do Público sobre as duas campanhas (o da "sociologia" do beijinho) no início da semana. Nesse texto lê-se a certa altura " os televisores mostravam, pela primeira vez, aquela que acabaria por ser a grande aposta da pré-campanha da Plataforma, a sua cartada decisiva: a materialização do aborto, a humanização do aborto, a exposição - a cores, a três dimensões e em movimento - "do feto que alguns querem matar".
A estas sensações, consideradas "sensacionalismo" pelos detractores do movimento, haveriam os três médicos convidados de associar noções científicas básicas e uns quantos números sobre pulsações às oito semanas de vida intra-uterina. Os três sabiam, contudo, que o impacto das imagens mostradas era muito mais eficaz que qualquer teorização, o que, aliás, não esconderam. Questionado sobre se aquelas imagens seriam mostradas ao público, o obstetra João Paulo Malta respondeu sem hesitar, rodeado da parafernália multimédia: "O mais possível."
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A este respeito resta-me aconselhar a leitura de post "O que se vê na ecografia" de Teresa Lévy , denso e carregado de informação, de que destaco a passagem

Num contexto político mais do ambíguo, as imagens biomédicas vêm 'dar corpo' e significado a uma 'entidade' que recorre aos que se perfilam como guardas dos nossos 'valores civilizacionais.' Pela frente encontram as mulheres tornadas invisíveis ou reduzidas à sua função de hospedeiras.

Os demagogos

Hoje à tarde, numa espécie de debate com Pedro Moutinho -- líder da Juventude Popular do Porto --, fui «acusado» de demagogia por referir o vergonhoso papel de alguns sectores da Igreja nesta campanha. Sobre o dantesco powerpoint mostrado por Pedro Moutinho nem vale a pena falar, por isso adiante. Eu sei que as evidências custam, mas enquanto estávamos a «debater» multiplicaram-se as reacções de repúdio à propaganda anti-aborto que está a ser veiculada em infantários do Centro Paroquial da Anunciada, entre outros referenciados também no Porto. Recorde-se que todas as instituições envolvidas na distribuição daqueles inacreditáveis panfletos beneficiam de apoios do Estado. O Centro Distrital de Segurança Social de Setúbal já disse que «vai actuar» -- aguardemos -- e uma das mães descreveu a acção nos infantários como « terrorismo, puro e duro». Tudo isto é estranho, eu sei, mas parece que anda por aí um caso sério de demagogia. Vá lá, quem anda a tramar o argumentário de Pedro Moutinho?

O príncipe do NÃO

As reacções ao debate com o Daniel Oliveira na TSF permitiram perceber o enorme desconforto que César das Neves causa ao NÃO. César das Neves reiterou altissonante que defenderia uma legislação mais restritiva que a actual por forma a permitir, por exemplo, que uma mulher violada seja obrigada a levar a gravidez até ao fim. Fica a sensação que esta posição será tudo menos marginal dentro do Não, estará , isso sim, estrategicamente calada. Por outro lado, sejamos justos, haverá pessoas contrárias à despenalização que não se sentem representadas pelo NÃO de César das Neves. Até aqui ainda conseguimos entender. O que baralha um pouco qualquer genuína tentativa de destrinça é abrir o Público e ler que o livro de César das Neves Aborto, Uma abordagem Serena (imagino) será hoje apresentado por... Marcelo Rebelo de Sousa.

O professor anda numa fase confusa.

O nível do subsolo

Há muitas formas de desvirtuar um referendo. É possível enredar a questão que vai a votos em artifícios retóricos tentando confundir tudo e todos. Também se chega lá afirmando que nada do que é perguntado está perto do essencial. E assegurando que a pergunta esconde um sem número de perfídias, habilmente camufladas por detrás da gramática e apenas visíveis para iniciados devidamente legitimados. Outros chegam ao ponto de anunciar o fim dos "valores", da "moral", do "direito" e da "civilização" tal como os conhecemos, caso a sua posição não seja vencedora.
Tudo isso e muito mais foi usado e abusado pela campanha do "Não".
Mas nunca, até agora, se tinha atingido o ponto sem retorno da sordidez como aqui: a instrumentalização de crianças numa campanha eleitoral. Sem consentimento de ninguém, evidentemente, sem a compreensão das próprias.
É provável que quem julga deter a verdade na sua mão direita, para os que ostentam certezas absolutas e indisputáveis sobre as questões mais difíceis deste mundo (e do outro), nada disto pareça excessivo - no fundo, para os apóstolos da infalibilidade dos seus próprios dogmas, todos os meios são idóneos e possíveis para atingir o fim pretendido. Até as crianças, senhores...

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O delírio

O extraordinário Diogo Almeida, com uma invejável costela cómica (que pena o país não ler blogues!), vem, a exemplo do que o Juiz Pedro Soares de Albergaria já fizera, interrogar-se sobre se o pai não deveria ter voto na matéria em relação à interrupção voluntária da gravidez.

Talvez Almeida tenha a atenuante de ser jovem. Mas esse não é o caso do Juiz Albergaria, que, além do mais, passa a vida a citar o Supremo Tribunal Federal dos EUA. Recomendo a ambos que leiam o acórdão em que o Supremo Tribunal Federal conclui pela inconstitucionalidade de uma lei do Estado da Pensilvânia que obriga à consulta prévia do pai antes de se praticar uma interrupção da gravidez.

Em todo o caso, deixo ainda uma proposta ao cuidado de Pedro Soares de Albergaria (e do jovem Almeida): e que tal prever-se um aborto terapêutico para defender a saúde física ou psíquica do pai? Quer dizer, quando a gravidez da mulher prejudicasse a saúde do progenitor, esta deveria ser obrigada a interromper a gravidez. Assim é que se respeitava o princípio da igualdade!

ADENDA — O fardo do procriador está melhor explicado aqui.

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Cientistas pelo SIM: Porque voto SIM

Contribuição de Pedro Manuel Gonçalves Lourtie.

No dia 11 vou votar sim no referendo.

Para mim o que está em jogo é saber se a sociedade portuguesa entende que as mulheres que interrompem voluntariamente a gravidez até às 10 semanas, e quem as ajude, devem ou não ser consideradas criminosas e, em consequência, ser penalizadas.

O resto da pergunta introduz duas condicionantes. A primeira é que tenha sido realizada por opção da mulher, o que só posso entender como significando que deve ser penalizado quem force uma mulher a interromper a gravidez contra a sua vontade. Por outro lado, é totalmente descabido considerar que a opção deve ser de terceiros. Não acredito que alguma mulher interrompa uma gravidez por puro prazer, pelo que não há ninguém melhor colocado para tomar a decisão. Ou será que as mulheres são consideradas irresponsáveis, por definição?

A segunda é que a interrupção da gravidez seja realizada em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, ou seja, em condições de segurança clínica, evitando as consequências conhecidas do aborto clandestino.

É sempre mais fácil defender posições radicais ou dogmáticas do que soluções equilibradas. O prazo de 10 semanas poderia ser de 10 semanas e um dia, de 9 semanas ou de 12, como é o caso em variados países europeus, não sendo o resultado inequívoco de uma equação matemática.

Mas a fixação de limites que não são matematicamente determinados é o que a lei faz de há muito em muitas áreas. Por exemplo, no domínio da circulação rodoviária, as taxas de alcoolemia ou a velocidade máxima. Esta tanto pode ser excessiva como conservadora, em função da viatura, do trânsito, do condutor ou da estrada. Usando o caso das velocidades máximas como analogia, o que o «não» defende corresponderia a fixar a velocidade máxima em 0 km/h, evitando-se totalmente as perdas de vidas por acidentes de viação. Mas, como impedir a circulação é irrealista, as penalizações que a lei estabelecesse para quem circulasse não deveriam ser aplicadas.

Parece ser necessário recordar que a lei que resultar da aprovação do referendo não será apenas a pergunta que coloca, transformada em afirmação. Caberá à Assembleia da República elaborar e aprovar o texto da lei, no respeito do resultado do referendo. A mesma assembleia, democraticamente eleita, a quem está confiada a elaboração das outras leis, incluindo a Constituição da República.

O aborto é um problema de saúde pública. Todos conhecemos histórias de mulheres que fizeram um número elevado de desmanchos, designação popular que tem uma carga menos negativa do que a de aborto. A situação é conhecida e socialmente tolerada. Será que são criminosas?

Sem prejuízo do que deve ser feito no domínio da educação sexual e do planeamento familiar para reduzir o número de interrupções da gravidez, clandestinas ou não, a despenalização é a única forma de combater o aborto clandestino e as consequências que tem para a saúde da mulher, já que nem todas podem ir ao estrangeiro.

Espero que o bom senso prevaleça e a maioria vote sim no próximo dia 11.

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"De qualquer maneira, e apesar do alarido geral, a pergunta do referendo é limitada e concreta: quer, ou não quer, o eleitorado acabar com o aborto clandestino até às dez semanas de gravidez? Nada mais. O "não", sem defender o regime presente, alega que esta medida irá aumentar e "normalizar" o aborto. E, para evitar esse perigo, aceita que milhares de mulheres paguem um preço de sofrimento e de humilhação (a maioria infelizmente por ignorância e miséria). O "sim" prefere acabar com o mal que vê e pensar depois no mal que vier, se de facto vier. O referendo é um acto político, que se destina a mudar a sociedade (idealmente, para melhor) e não resolver um debate. Claro que, se o "sim" ganhar, o Estado, na prática, "oficializa" o aborto. Mas triste de quem espera do Estado uma fonte de legitimidade moral. Por mim não, espero. E voto "sim"." Público

O útero como espaço de interesse do direito penal

Fernanda Câncio assinala, com razão, que o crime de aborto é desenhado na perspectiva da intrusão no útero da mulher. Não há nenhum exagero nesta afirmação. Se um embrião com grau de desenvolvimento equivalente se encontrar num laboratório, ninguém questiona o seu destino ou protesta por não ser aplicada a incriminação do aborto. Nesse caso, não teria graça, porque poderia ser um homem (um cientista) a guardar o embrião. Esta mania de perseguir as mulheres tem muita tradição.

As Ordenações do Reino já incumbiam os quadrilheiros, percursores da moderna Polícia Judiciária, de correrem os lugarejos todos, para verificarem se, havendo mulheres presentes, se não dava conta da criança.

Candidatos a quadrilheiros não faltam por aí. É vê-los na campanha do "Não". Uns abrem o Código Civil e falam em " nascituros não concebidos", sem perceberem o que dizem; outros falam em telemóveis; outros ainda falam em capricho, negócio ou feitiço.

Estes modernos quadrilheiros, que bem merecem a classificação científica de uterólogos, ostentam nomeadamente um ar beato e deslumbrado. Arregalam os olhos deslumbrados, a anteverem as chamas do inferno. Um dos seus gurus, o pároco de Castelo de Vide, já prometeu o fogo eterno a quem votar sim, quem se enganar na cruz ou quem ficar em casa. Só não se livram de uma coisa: também eles se desenvolveram no útero (feminino).

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Reapropriar as vidas

É minha firme crença que o domínio da vida humana não pode ser concebido fora das relações sociais. A vida vai muito para além dos princípios. E permitir que as questões da vida sejam adstritas ao grupos a que há muito, têm servido para obstaculizar determinados direitos humanos que apoiariam a melhoria das condições de vida das pessoas (especialmente se falamos de mulheres, conhecem-se as escandalosas posições do Vaticano e de alguns países árabes em conferências da ONU), é a meu ver, politicamente inaceitável. Significa transformar ética em moral. Usar um conceito religioso e moral de vida enquanto princípio que permite que mulheres não usufruam das suas vidas como entendem, do seu direito a decidir quantos filhos querem ter, enquanto princípio legal é lesar a cidadania e a democracia como um todo. E é um conceito particularmente desonesto, porque o princípio sacrossanto de protecção da vida intra-uterina desapareceu, em 1984, da lei vigente.

Vamos continuar a ter que suportar esta suspeição misógina da capacidade de escolha das mulheres tratando-as como mentalmente incapazes de terem direitos sexuais e reprodutivos? Ou votamos sim no referendo e respeitamos as vidas das mulheres?

Coisas simples

Uma das afirmações recorrentes dos partidários do "sim" é a de que, enquanto os "nãos" se perdem em pormenores "filosóficos", eles, pelo contrário, tentam resolver problemas "quotidianos" e "reais". Jacinto Lucas Pires

A frase está mal formulada. Os partidários do "sim" também se preocupam com os pormenores "filosóficos" , perdem-se é menos. E os partidários do "Não" também se preocupam com os problemas quotidianos e reais, embora não os resolvam.

Coisas Simples

Defender o "Sim" com o argumento da convergência europeia é uma ideia infeliz. Defender o "Sim" com o argumento de que por causa da lei actual a imagem de Portugal é a de um país atrasado, também me parece uma ideia infeliz. Mas querer fazer do "Sim" uma simples consequência dos "ares do tempo" ou uma "causa fracturante" da esquerda é ignorar o que se passou na Europa e nos EUA nos últimos 40 anos, bem como fechar os olhos à pluridade de orientações políticas que o "Sim" abarca. Esta foi mesmo muito simples.

Coisas simples

"The real question for him and for all of us is whether that tiny human life has a God-given right to be protected by the law". Quem escreveu isto? Não sabemos. E quem escreveu:"I've noticed that everybody that is for abortion has already been born." ? Também não sabemos. Mas ambas as frases foram ditas por Ronald Reagan e podem ter vindo do caneta do mesmo speechwriter. A primeira recorda-nos que segundo o antigo presidente não podemos responder à questão essencial sem apelar ao divino. Na América nunca deixou de ser assim. A segunda frase deixa Deus fora da história e é mais catchy. De resto, têm surgido variações sobre o tema. Por exemplo, quando se ouve um filho agradecer a sua mãe por ela não o ter abortado sabemos que estamos em pleno universo pimba, mas é ainda o mesmo truque que opera: a sugestão de que o embrião tem uma voz, um pensamento, até uma opinião. Convém por isso lembrar que o embrião não tem voz, não tem pensamento, não tem opinião. Aliás, como não tem um cérebro podemos garantir que não tem actividade cerebral, tal como a entendemos. É por isso que este agradecimento do filho não pode ter efeitos retroactivos e é absurdo. Admite até uma comparação: o agradecimento antecipatório de uma mãe a um filho por ter a certeza de que, quando se encontrar numa situação irreversível de morte cerebral, jamais ele permitirá desligar a máquina que (por mais algum tempo) assegura as funções vitais. Mas como se vê, o exemplo simétrico de uma deselegância ainda é deselegante. O melhor é recentrar o problema.

A prioridade

«A tradição rabínica não tem uma posição dogmática em relação ao aborto: não o proíbe radicalmente, nem o permite indiscriminadamente. Acima de tudo está a vida da mulher mãe: a sua saúde física e psíquica - o que implica não só as condições que determinaram a gravidez, mas a capacidade e a vontade de gerar e acolher a nova vida. Nesta perspectiva da prioridade da vida da mãe, o aborto não é considerado crime, porque o embrião ou o feto é parte do corpo da mãe e, apesar de ser uma vida em potência, não tem ainda existência própria.»



Esther Mucznik, Público, 02.02.2007

manipulação

Ludwig Wittgenstein paira sobre este referendo. O filósofo austríaco
demonstrou que o vocabulário que utilizamos expressa - muitas vezes inconscientemente - as intenções, os significados e as premissas subjacentes aos nossos argumentos. Mas, porque a linguagem nunca é neutra, facilmente se transforma num instrumento de manipulação.Vejamos. Quando se referem à "defesa da vida", os adeptos do Não insinuam que o "Sim" defende a morte. De forma sibilina, o campo do "Não" acusa os defensores do "Sim" de desrespeitarem a vida. Recorrem a um truque retórico com o objectivo de classificarem os partidários do Sim como seres destituídos de referências e valores morais. Trata-se, em suma, de desumanizar quem tenciona votar Sim. Esta desonestidade discursiva confronta-se com uma contradição insanável. Se a interrupção da gravidez equivale a "matar o bébé" -como afirmam os "Nãos" mais exaltados - como podem justificar interromper uma gravidez em casos de violação, de perigo de saúde para a mãe e deformação do feto? Um feto resultante de uma violação deixa de ser vida? João César das Neves é um dos poucos defensores do Não que adopta uma posição coerente. Num debate com Daniel Oliveira, na TSF, disse que "matar aquela criança só porque a sua origem não é a desejada não é uma coisa aceitável". Traduzido: em condição alguma se pode interromper a gravidez. Logicamente, o Não deveria pedir o fim das excepções contempladas pela lei actual, e a repenalização da interrupção voluntária da gravidez.

Publicado hoje no Diário de Notícias

Princípios e valores

Uma das estratégias do Não é passar a mensagem de que defende "princípios e valores" (Bagão Félix, ontem numa TV) contra um Sim que supostamente é apenas pragmático. Acontece que o Sim defende princípios e valores e não deveria hesitar em proclamá-los. Defende os princípios e valores liberais fundamentais na democracia em que vivemos (o estado não deve impor a moralidade de alguns sobre todos na ausência de consenso social) e defende a primazia da autonomia, da liberdade e da dignidade da pessoa humana em cujo corpo acontece a concepção - a mulher. Defende, em suma, a cidadania plena destas pessoas, para mais historicamente subalternizadas - e em função da sua potencial capacidade de gestação. Há que perguntar, isso sim, ao campo do Não, de onde vêm os seus princípios e valores. O conceito absoluto e abstrato de vida que utilizam comporta uma deriva fundamentalista. E esconde um conceito específico de vida que nunca assumem no seu discurso: o conceito metafísico do cristianismo católico. Isso leva à confusão constante entre "crime" e "pecado" subjacente à discussão sobre (des)penalização. Confusão que os crentes poderão continuar a fazer na gestão das suas vidas, em plena liberdade religiosa. Mas uma confusão que os princípios e valores da democracia não podem consagrar em lei. Não tenhamos receio de afirmar princípios e valores; e obriguemos os partidários da penalização a assumirem a especificidade dos seus.

Cientistas pelo SIM: A vida não é um absoluto

Este texto de Paulo Gama Mota, biólogo e director do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, insere-se numa troca de mails acerca da literária coisa humana usada por Lídia Jorge no Prós e Contras de segunda-feira, facto que os paladinos do NÃO têm usado ad nauseam como arma de arremesso.

Tem toda a razão: um feto humano não é uma coisa! É um ser vivo em desenvolvimento. E as mulheres que enfrentam o conflito moral de terem que abortar, não o fazem de ânimo leve. Mas, é um conflito moral privado que, assim o entendo, não cabe à lei dirimir ou punir.

As contradições do Não são inúmeras e insuperáveis. Falam de vida, mas esquecem que os óvulos e os espermatozóides são também vida. Não há descontinuidades na vida desde há 3,5 mil milhões de anos.

Criticam a despenalização, como uma forma de atentado contra a vida, mas aceitam a actual lei que permite que se atente contra a vida em caso de violação, por exemplo. Para serem coerentes, deviam exigir a penalização de todas as formas de aborto, não acha?

Quando o médico decide desligar a máquina que mantém alguém vivo artificialmente, está a terminar com uma vida. Devia deixá-la ligada para sempre? Nunca a deveria ter ligado, porque, ao fazê-lo, está a interferir com a vida?

A vida não é um absoluto.

A decisão de desligar baseia-se entre outros no conceito de morte cerebral. Mas, este é um conceito médico. Os tecidos continuam vivos e os órgãos a funcionar. Estas opções sobre a vida existem e são reais. A vida não é um absoluto.

Se reflectissem um pouco mais perceberiam que a posição do «Não» inclui contradições insanáveis.

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Cientistas pelo SIM - Uma questão de consciência

Contribuição de Ana Maria Botelho do Rego, química.

Nunca abortei na minha vida nem nunca tive qualquer intenção de o fazer. Não tenho por isso a veleidade de imaginar a angústia, o combate íntimo entre sentimentos contraditórios que, presumo, invadem a mulher que opta por fazer um aborto. Não há régua, não há escala para o sofrimento. Essa é uma das razões pelas quais não estamos no domínio do científico. Só temos verdadeira ciência quando podemos quantificar, medir, ter bitolas exteriores ao que é medido. Quando vários observadores independentes possam obter os mesmos resultados quando observam um mesmo fenómeno. Chama-se a isto reprodutibilidade (não confundir com reprodução).

Ora na questão do aborto, ou da interrupção voluntária da gravidez ou, para retomar um termo mais cru mas mais genuinamente português, do desmancho, às razões íntimas e aos sentimentos, não temos acesso do exterior; as razões expressas apresentam uma tal variabilidade que também não são, sequer, hierarquizáveis. Muito menos devem ser sujeitas a julgamentos de valor. Quanto ao ponto, talvez mais crucial da questão que é a de estabelecer o instante zero da existência de uma pessoa, não existe, pelo menos por enquanto, nenhum «relógio», nenhum mecanismo que o permita estabelecer sem qualquer dúvida.

É por isso que, nesta questão, incapacitada como estou, pela própria natureza do assunto, de o tratar com a ferramenta científica, o trato usando como ferramenta a minha consciência. E o que ela me diz é que, se um dia eu tivesse precisado de recorrer à IVG, o sofrimento moral seria tão grande que a última coisa de que eu precisaria seria a de lhe adicionar o sofrimento físico e o risco de vida associados a um aborto clandestino, um processo penal e penoso e o risco de uma prisão. Por isso vou votar convictamente SIM neste referendo.

Uma pergunta para uma resposta

Isto teoricamente é muito simples. Há uma pergunta que começa pela forma "Concorda com...?" e que permite duas respostas, um "Sim" ou um "Não". Como é evidente, isto quer dizer que os apoiantes do "Sim" estão unidos por uma coisa: são todos os que "concordam com..." o complemento da pergunta. Deveria ser também evidente que os apoiantes do "Não" são todos os que discordam. Mais devagar, por favor: entrámos no território do "Não", onde as evidências exibem comportamentos pouco evidentes.

Se há coisa em que admiro o "Não" é pelo esforço em dissipar a pergunta do referendo com uma imaginação que nem o mais descontruccionistas dos pós-modernos alguma vez demonstrou. Há quem diga que a pergunta não é uma pergunta, mas duas, ou três, ou cem mil. Passado duas frases, os mesmos exigem que a pergunta contivesse mais cinco considerandos e dez provisões, incluísse pormenores de leis futuras e promovesse uma geral reformulação de tudo. Afinal, parece que a pergunta está incompleta. Mas, esperem: vem outro e diz que a pergunta é capciosa, mas que votou por ela no parlamento para facilitar a realização do referendo (ou seja, para permitir que fosse colocada uma pergunta capciosa aos portugueses? e que espécie de deputado é este?). Mais uma revienga, e a pergunta é demasiado aberta. Fechada. Aberta. É demasiado indecisa. Uns lamentam que a pergunta incida sob determinadas condições ("as dez semanas", "a opção da mulher", "o estabelecimento de saúde legalmente autorizado"). Mas a seguir dizem-nos que é nessas condições (que, por o serem, qualificam e restringem o âmbito da pergunta) que está a armadilha tenebrosa que pretende fazer tábua rasa de todos os limites. E, com o tempo, virá alguém que nos diga que a pergunta não é uma pergunta: talvez seja uma exclamação...

Admiro estes saltos e pinotes da lógica. Para os produzirem, os apoiantes do "Não" fazem-se passar em simultâneo por extraordinarimente subtis e invulgarmente obtusos. Passam da interpretação imaginativa ao bloqueio gramatical em três segundos. Estou sempre à espera da próxima variante: talvez a pergunta seja em código e utilize números de Fibonaci; talvez seja demasiado simples e portanto insultuosa para os portugueses. Alguma coisa terá que ser. É precisamente por isso que, na última semana de campanha, é preciso dar especial divulgação a uma pergunta compreensível e directa que merece apenas isto de todos os portugueses: uma resposta honesta.

Carta aberta de crentes para crentes

A despenalização do aborto não opõe crentes a não crentes. Porque o que nos é perguntado neste referendo não é se somos ou não a favor do aborto mas sim quem é pela penalização da mulher que aborta até às 10 semanas e quem é contra essa penalização e pela consequente mudança da lei.

A despenalização do aborto não opõe adeptos da vida a adeptos da morte.
É perfeitamente compatível ser-se - em pensamentos, palavras e obras - contra o aborto, por uma cultura de vida plena e em abundância, e defender-se que a lei do Estado não deve impor que as mulheres que, em concreto, recorrem ao aborto nas 10 primeiras semanas de gestação sejam julgadas e punidas por essa decisão.


A despenalização não impede ninguém de continuar a bater-se pelas suas ideias e de lutar contra a prática do aborto. Mas sempre e só pelos seus argumentos e pelo seu testemunho, não por imposição da lei mais grave de todas, a lei criminal. Mais ainda: se todo o empenho em favor da promoção de condições de vida que desincentivem o recurso ao aborto é louvável, estamos crentes de que um tal trabalho só ganhará em credibilidade se deixar de ser feito à sombra de uma lei que mantém a ameaça de julgamento e de prisão para as mulheres.

Só com a despenalização do aborto, eliminando o aborto 'escondido' e clandestino, vai ser possível montar serviços de aconselhamento e apoio às mulheres que enfrentam o dilema de pôr ou não fim a uma gravidez indesejada. Na Alemanha, por exemplo, este serviço é prestado também por organizações católicas.

Os muitos homens e as muitas mulheres crentes que respondem SIM à despenalização do aborto até às 10 semanas afirmam uma convicção essencial: a de que não é nunca pela espada da lei que a fé se afirma, mas sim pela força do testemunho de vida e pela densidade do amor ao próximo. Na dureza de cada caso concreto e não por princípios gerais e abstractos. A um drama (o da mulher que aborta) não se responde com outro drama (o julgamento e a prisão dessa mulher). Todas e todos sabemos que a essas mulheres não se responde com uma lei que manda julgar e punir mas com compreensão e respeito. É isso, e só isso, que está em causa no referendo do próximo dia 11 de Fevereiro.

E a isso respondemos SIM.


Carta Aberta de cristãos pelo sim do Movimento Cidadania e Responsabilidade pelo Sim


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Pequenos filmes

Estes são os spots de tempos de antena já disponíveis. Serão publicados todos os sejam colocados no YouTube. Pelo sim, claro.






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Este post arrasou aqui com o pessoal do Sim

Por favor, mais Diogo Almeida não!, por favor, rendemo-nos.

No news é que seriam good news

Hoje, numa sessão de católicos pelo sim, estavam duas televisões. Nenhuma era portuguesa. Uma suiça, outra francesa. A presença de televisões e jornalistas estrangeiros tem sido constante, como nunca acontece noutras campanhas. Vêm ver a aberração.