Segunda-feira, Fevereiro 5

Segunda-feira, Fevereiro 5

A bomba atómica

Cada vez se torna mais claro que o Não utilizou a sua proposta de ontem (a ideia peregrina de despenalizar o aborto na Assembleia da República após o Referendo) como última e desesperada arma de confusão maciça para dar a volta a uma campanha que lhe está a correr mal. O anúncio, programado ao milímetro por Alexandre Relvas (o estratega político que Cavaco Silva apelidou de "o meu José Mourinho"), é transparente na sua politiquice. Em dado momento, alguém deve ter concluído que os Zézinhos, as ameaças de excomunhão dos padres de província e os cartazes a puxar ao sentimento não bastavam. Era preciso agitar ainda mais as águas, criar o máximo de perplexidade, urdir um labirinto legal que baralhasse de vez os indecisos. E lá surgiu o derradeiro trunfo, saído da cartola precisamente uma semana antes da votação. Depois, faltava só a cereja em cima do bolo: um palco mediático para legitimar a ideia peregrina, ao ponto de quase se substituir à pergunta que de facto vamos referendar.
Previsivelmente, Fátima Campos Ferreira fez mais do que disponibilizar aos defensores do Não o palco mediático de que tanto necessitavam. Também lhes estendeu, solícita, a passadeira vermelha.

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A nova estratégia do Não

Sentindo o terreno fugir-lhe debaixo dos pés, o Não fez sua a conhecida máxima: "É preciso que alguma coisa mude para que tudo possa continuar na mesma."

Há coisas fantásticas, não há?

O Presidente Cavaco Silva convocou um referendo para votarmos a questão que todos conhecemos.

A Drª Fátima Campos Ferreira acha-se no direito de organizar um debate no canal público cujo propósito é convencer o país de que no dia 11 vamos referendar a proposta da Drª Rosário Carneiro.

Herói da noite (até agora)


Rui Pereira, penalista.
Está a desmontar, um a um, todos os ardis júridicos do Não.

Leitura recomendada

Vital Moreira em Conferência de Imprensa hoje à tarde

A proposta agora lançada por movimentos e personalidades que lutam contra a despenalização do aborto, no sentido de criar um mecanismo legal que assegure a não punição das mulheres que recorram ao aborto, constitui uma manobra de mistificação e de confusionismo de última hora, que só o receio de perderem o referendo e uma grande dose de cinismo podem justificar.


1º - Esta proposta de alegada "despenalização" (como eles têm o despudor de dizer...) só aumenta a confusão sobre o que desejam os partidários do não, pois há propostas e sugestões de toda a ordem e feitio: há quem pretenda alterar a pena prevista para o aborto, em vez da pena de prisão, tendo uns falado em trabalho comunitário, outros em simples multa; há quem pretenda manter a pena mas dispensar a punição, seja por via de uma "suspensão" do processo penal, seja por via de uma cláusula automática de desculpabilização. E há obviamente quem não concorde com nenhuma destas "cedências" e defenda que o lugar das criminosas que "matam os filhos" é mesmo a prisão. Nessa enorme confusão há porém uma coisa que todos eles mantêm: a condenação do aborto como crime no Código Penal e das mulheres como criminosas.


2º - A ideia de um crime sem punição é totalmente insólita em termos de direito penal, sendo uma verdadeira contradição nos termos. Não faz nenhum sentido que certas condutas sejam qualificadas como crimes e depois garantir aos responsáveis a impunidade. Qualificar uma conduta como crime e prescindir antecipadamente de punir os "criminosos" traduzir-se-ia em subverter a própria razão de ser do direito penal. Só pode haver despenalização com descriminalização, como qualquer dicionário indica.

3º - A isenção de pena também não elimina nem o estigma da condenação penal do aborto nem a humilhação das denúncias e da investigação pelas autoridades judiciárias;


4º - Propor a isenção de pena sem verdadeira despenalização do aborto – como se propõe no referendo -- não altera o principal efeito da penalização, que é o aborto clandestino com todas as suas consequências: falta de aconselhamento na decisão de interromper a gravidez, decisões mais tardias e mais arriscadas, abortos em condições inseguras, lesões da saúde física e psíquica das mulheres, em certos a casos a morte.

5º- Ao defender agora a dispensa de punição (embora sem despenalização), os partidários do não entram em contradição com a principal razão da sua oposição à despenalização, que é a utilização da ameaça de punição penal como meio de dissuasão da decisão de abortar. Na verdade, prescindindo do medo da punição, como é que eles pretendem impedir as mulheres de abortar? Não se pode vir defender a impunidade do aborto e simultaneamente assentar a campanha na ideia de que o não é necessário para "salvar vidas"...

6º- Além de pouco séria, a proposta de última hora adoptada pelos adversários da despenalização é puramente oportunista. Há nove anos o não venceu, mas sem carácter vinculativo, pelo que os partidários do não tiveram todo este tempo para estudar, propor e aprovar a pretensa "terceira via" que agora precipitadamente propõem nas vésperas de novo referendo. Quem pode acreditar na sua sinceridade?

7º - O que está em causa no referendo é dizer sim ou não à despenalização limitada e condicionada do aborto. Como é próprio de todos os referendos, a pergunta é dicotómica. O sim significa revogar a punição penal do aborto, nos limites e nas condições indicadas na pergunta; o não significa o contrário, ou seja, implicitamente manter o que está. Não há lugar para "sim, mas" nem para "não, mas", nem para uma terceira alternativa. De resto, se admitiam uma solução a meio caminho – dispensar a punição mas manter o crime –, os partidários do não tiveram toda a oportunidade de propor essa versão na formulação da pergunta referendária. Por que é que o não fizeram (antes aprovaram a formulação da pergunta) e só o fazem agora?

8º - A proposta agora lançada significa também uma subversão da lógica do referendo. Só a vitória do sim permite uma verdadeira despenalização do aborto (nos limites e condições indicados); e se o referendo for vinculativo, essa despenalização é obrigatória, sem tergiversações . Uma eventual vitória do "não" não assegura nem permite sequer a semidespenalização agora oportunisticamente defendida pelos partidários do não. Pois, se vencer o não – que significa rejeição da despenalização --, com que legitimidade é que a AR poderia aprovar medidas de isenção de punição contra a maioria dos votantes no referendo, sobretudo se o referendo for vinculativo?

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Universidade Aberta

Ao fim de 45 minutos, começo a desconfiar que alguém transferiu o plateau do Prós & Contras da Casa do Artista para uma Faculdade de Direito.

Em Portugal (século XXI) não sejas romano

Vera Jardim: Não há nenhum código penal na Europa em que a um crime não corresponda uma pena.

Fátima Campos Ferreira: Na Roma Antiga havia.

Vera Jardim: Pois, mas já não estamos na Roma Antiga.

Uma pergunta

Começou há poucos minutos o segundo round sobre o Referendo no programa Prós & Contras. E eu pergunto: se o Sim tivesse perdido clamorosamente o debate da semana passada (como o Não perdeu), também teria direito a uma desforra?

Marques Mentes?



Falta de seriedade
Inconstitucionalissimamente
A grande mentira
Eu não diria melhor

"O aborto mata"

Foi esta a frase que vi reproduzida em vários blogs pelo Não hoje. E sim, o aborto clandestino mata, daí ser um imperativo despenalizar a sua prática!


(fonte da imagem: Unsafe abortion - Global and regional estimates of the incidence of unsafe abortion and associated mortality in 2000 , Organização Mundial de Saúde, Genebra, 2004)

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Assim vai a campanha democrática e tolerante do "Não"

Luís Villas-Boas demitiu-se do Movimento do Não de que era mandatário porque considera que "a campanha do Não está radicalizada " (ouvi "ao vivo" na TSF, mas está aqui).
Entretanto, a sede nacional do PS foi vandalizada pelos moderados adeptos de todas as Vidas...

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O ponto de vista das abortadeiras

Alguns partidários do "Não" já aceitam a "despenalização" da interrupção voluntária da gravidez, desde que a sua prática não deixe de ser ilegal. Continuaria, portanto, a ser praticada por curiosas em vãos de escada. A saúde das mulheres grávidas é, para eles, uma questão irrelevante.

Os (ab)usos da ciência

Acho sempre curiosas as utilizações que são feitas do conhecimento científico como neste caso do referendo sobre a despenalização da IVG. O Não ultimamente anda a usar o argumento das implicações psicológicas e psiquiátricas da ivg para sustentar a sua causa. É a mesma estratégia que os anti-escolha têm vindo a usar nos Estados Unidos. Particularmente em relação ao síndrome pós-aborto, devo dizer que, para quem conheça minimamente esta literatura, fica-se surpreendido com a desfaçatez com que se usa uma categoria diagnóstica que NÃO EXISTE!

Como sustentar categorias diagnósticas , ou sub-tipos clínicos, quando não há estudos que suportem a sua existência? Sobre as implicações psicológicas da ivg têm vindo a ser conduzidos estudos. Uns melhores, outros francamente maus. Do que li em sites de técnicos de saúde do não, muita da investigação feita sofre de uma série de problemas metodológicos, a saber:

1)dimensões das amostras demasiado pequenas

2)amostras não representativas da população

3)grupos de comparação mal construídos: é absurdo comparar pessoas que nunca engravidaram e pessoas que acabaram de ter um filho com mulheres que fizeram um aborto

4)Não é habitualmente referida avaliação da saúde mental antes da IVG (condição essencial para provar que depois há um problema)

5)Estudos com dados desactualizados e em contextos não comparáveis

6)Um das referências (Coleman et al, 2005*) mostra que o tal "síndrome pós aborto" é concomitante com "Orientações tradicionais ligados ao papeis de género e à filiação religiosa ou a pontos de vista conservadores sobre o aborto". Afinal o que o Não propõe...

7)Este mesmo texto ainda afirma: "pode ser proposto que os nossos resultados reflictam os efeitos de uma gravidez indesejada na saúde mental, ao invés dos efeitos do aborto per se na saúde mental"

Usar categorias diagnósticas que não constam dos instrumentos de classificação internacionais, ICD e DSM, parece-me grave. Derivar conclusões a partir destes estudos que mencionam pior um pouco. Vendê-los como verdade científica, num debate politico... deixo a quem leia a consideração.


*Priscilla K. Coleman , David C. Reardon, Thomas Strahan, Jesse R. Cougle (2005). The psychology of abortion: A review and suggestions for future research. Psychology and Health, 20, 2: 237 – 271.

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despenalização não, mas se calhar até sim

O Não, em geral, não gosta da lei que temos (apesar de alguns fundamentalistas que preferiam uma solução tipo Nicarágua). O Não não gosta que se cumpra a lei da IVG. O Não não quer as mulheres presas, prefere ressocializá-las. O que o Não não quer é que as mulheres escolham. Pronto, já se entendeu que são misóginos e misóginas. Agora criticar o PS, acusar Sócrates de estar a agir mal quando diz que se o não ganhar, a lei será mantida e cumprida, é da mais absoluta falta de sentido do que é o Estado de Direito. Querem votar não num referendo sobre despenalização da IVG e depois se o ganharem, querem que afinal se despenalize? Quem é que percebe, este "despenalização não, mas se calhar até sim..."?

O perdão às mulheres

Há dentro do Não quem defenda intransigentemente a sua posição e, para isso, não se perturbe em amesquinhar as (demais) mulheres, ora sugerindo-as fúteis ora destituindo-as do arbítrio para decisões ponderadas. Mas, tal é a deriva, que começo a pensar que também haverá quem esteja a usar a discussão do aborto para, a reboque do Não, poder dar livre curso à expressão da mais entranhada misoginia. Para estes últimos a ideia de que a mulher deva fazer trabalho comunitário ou pedir perdão à sociedade (possivelmente de joelhos) é infinitamente mais aliciante do que a cadeia: a bondosa indulgência cristaliza o poder de quem perdoa revestindo-o do divina complacência da boa sociedade.
Não tenho por certa a linha divisória destas duas vontades que militantemente vêm menorizando as mulheres ─ as que falam pelo não entronizam-se sempre como a excepção iluminada entre as outras, coitadas. Assisto contudo algo estarrecido ao modo como estas duas pulsões se diluem no Não e crescentemente dominam as possibilidades discursivas na defesa da lei vigente.

A Sra. "vítima" que peça "desculpa" (para arrumar o assunto)

"... A sociedade devia definir uma punição. Para mim, seria suficiente chamar a mulher, fazer-lhe um discurso que a obrigasse a ponderar. Bastava que pedisse desculpa à sociedade para arrumar o assunto. Olho para a mulher como uma vítima ..."

Daniel Serrão, numa lamentável entrevista ao JN, menoriza a mulher até mais não. Resta saber se essas desculpas seriam públicas, em Tribunal, se na Igreja ou na TV em directo e prime time. E se lhes deveríamos acrescentar uma pancaditas com um jornal enrolado para que essas inimputáveis e irresponsáveis que são as mulheres portuguesas percebessem as regras a que estão obrigadas...

Comentário de Luís Lavoura a esta posta no Blasfémias: "
É, a campanha do Não parece que está a adoptar paradigmas do tempo de Mao Zedong. Depois da ideia da "ressocialização" das mulheres (certamente que em "campos de reeducação" especialmente criados para o efeito em províncias longínquas do Império), vêem com esta do pedido de desculpas à sociedade (a "confissão dos desvios" já anteriormente praticada na China maoista) ".

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Abstenção daria vitória ao "não"

As sondagens dizem que a abstenção está a aumentar. Neste ponto, a campanha do "não" está a conseguir o que queria: causar cansaço e incómodo suficientes para que as pessoas prefiram não decidir. Assim ganharam há 8 anos. Não se pode repetir.

Guardiões do templo

Como manter intacto o viçoso mercado do aborto clandestino ao mesmo tempo que se atira a lei vigente para as calendas do escrutínio social?
Uma mirífica "suspensão provisória do julgamento em caso de aborto" deve fazer o jeito, terão pensado.

Sim, por favor obriguem-nos

Já nos tinham alertado para a dificuldades das mulheres em pensar. Agora, finalmente, alguém propõe que se faça algo a este respeito. "Em caso de vitória do "sim", activistas como Adão Fonseca, da Norte pela Vida, entendem que "a mulher devia ser obrigada a pensar" ", diz o Público. Ora ainda bem. Por favor obriguem-nos. Não se esqueçam é que para isso é preciso votar Sim, porque se o Não ganha continuamos sós e marginalizadas, entregues às clínicas de aborto clandestino, onde não consta que ninguém nos vá apoiar, aconselhar ou trazer-nos à razão.

Falta de seriedade

«Os defensores do Não lembraram-se de vir dizer que, caso o Não vença, irão propor a despenalização do aborto na Assembleia da República . Esta posição é de um oportunismo doentio e de uma tremenda falta de respeito pelo eleitorado. Se o Não vencer, teremos mais do mesmo e que ninguém caia na veleidade de alterar a lei nas costas do povo.
Mas a proposta dos auto-denominados defensores da vida é ainda mais ridícula se tivermos em conta que não passa da simples despenalização do aborto clandestino (já liberalizado!). O que se obtém ganhando o SIM é, contudo, bem mais interessante: despenaliza-se o aborto, desde que feito em condições de saúde, continuando a penalizar-se o aborto clandestino que tantas mulheres estropia.»

Pedro Morgado, na Avenida Central

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E as barrigas de aluguer?

Um dos argumentos do "Não" consiste em afirmar que um mulher que não quer estar grávida, que não quer ser mãe, tem que prosseguir com a gravidez e, quando o bebé nascer, pode dá-lo para adopção. Para além de muitas outras questões que este argumento suscita, pergunto: Mas não se opõem (pelo menos a Igreja Católica opõe-se) às barrigas de aluguer?

A palavra decisiva

O Prof. J.L. Pio Abreu, psiquiatra e professor da Universidade de Coimbra, envia este importante artigo. Venham mais!


Nas discussões sobre o próximo referendo, raras vezes tenho ouvido a decisiva palavra: amor. Tenho ouvido, sim, sobretudo pela parte dos adeptos do não, um fundamentalismo irracional cheio de zanga e intolerância, um desprezo punitivo pelos momentos mais dramáticos das mulheres concretas, reais e normais. Enquanto olham para os adeptos do sim (felizmente a maioria) como criminosos, os fundamentalistas do não compensam o seu desamor pelas pessoas existentes com a proclamação do amor por princípios, dogmas, seres em potência, não existentes como realidade concreta nem como objectos passíveis do amor das pessoas.
O que mais se vê aqui é desamor. Significativamente, em nome de uma "verdade científica" proclamada por quem nada sabe de ciência e que não sabe sequer que a ciência é avessa aos dogmas, procura a dúvida e tem de ser tolerante. Os adeptos da nova moral biológica esqueceram-se da espiritualidade, caindo paradoxalmente num materialismo simplório: uma célula ou um conjunto delas chega para definir uma pessoa. Não se questionam mais. Nem se questionam sequer sobre o destino que deram aos biliões de espermatozóides ou às dezenas de óvulos que geraram dentro de si.


Aceito que muitos adeptos do não terão passado por experiências decisivas que marcaram as suas opções. Não duvido do seu amor aos filhos que tiveram, eventualmente em circunstâncias difíceis, ou que desejaram ter. Esses filhos, mesmo em potência, têm toda a dignidade humana porque foram desejados. Não é porém o caso de quem se vê obrigado a fazer contracepção ou a interromper uma possível gravidez.
Como psiquiatra, sei que os abortos, espontâneos ou provocados, fazem parte da vida de quase todas as mulheres. Alguns podem passar sem sofrimento, excluindo o trauma e a perda de liberdade que resulta do aborto clandestino, ou o drama de transportar o segredo no seio de famílias conservadoras e fundamentalistas. Excluindo também a culpabilidade gerada nas campanhas para os referendos. Toda a questão é saber se a criança era desejada ou não, e qual o empenho amoroso dos pais que, por vezes, já tinham um nome para ela. Neste caso, tratava-se de um ser humano, fosse qual fosse o tempo de gestação.
Nem sempre é assim, e muitas gravidezes iniciais nem sequer são percebidas, se não negadas. Existem mesmo gestações destinadas à adopção (embora uma mulher que prossiga uma gravidez a termo possa criar, por vezes desesperadamente, laços com a criança que vai nascer). Mas se não for a mãe biológica, alguém que encontre a criança irá ter compaixão e amor por ela, e será esse o seu verdadeiro nascimento como pessoa. Sem isso, nem sequer sobreviveria.
O que dá o estatuto humano ao novo ser, seja ele um recém-nascido, feto ou ser em potência, é o primeiro acto de amor para com ele. Curiosamente, é essa a grande verdade que o ritual religioso do baptismo nos ensina.
J. L. Pio Abreu
Psiquiatra, Professor da Universidade de Coimbra


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O lugar da consciência

Podia começar com uma citação de Joseph Ratzinger, quando jovem figura pós-Concílio Vaticano II a dizer o óbvio: «Acima do papa, como expressão da autoridade eclesial, existe ainda a consciência de cada um, à qual é preciso obedecer antes de tudo e, no limite, mesmo contra as pretensões das autoridades da Igreja.» Longe de se imaginar na cadeira de Pedro, o hoje Papa Bento XVI disse - pouco antes de ser publicada a encíclica Humanae Vitae (1968) - aquilo que importa em questões que não são dogma de fé: o primado da consciência de mulheres e homens.

É isso que está em causa, neste referendo sobre a despenalização do aborto: o voto de cada um, e neste caso de cristãos e católicos em particular, deve ser ditado pela consciência de cada mulher e homem. O seu voto neste referendo não emana de qualquer regra absoluta ditada por Roma ou ameaçado por padres apocalípticos de Castelo de Vide.

É na racionalidade que radica a responsabilidade pelos actos das mulheres e homens deste país, neste mundo, e pela sua história. É ainda na exigência da racionalidade que se funda a abertura a um mundo ético. Graças a essa exigência, as mulheres e os homens tomam verdadeira consciência dos seus limites e podem então tornar-se responsáveis em relação ao Outro. As mulheres e os homens responsáveis podem aspirar à liberdade. Um projecto de liberdade assume e integra o erro e a falibilidade do agir humano. Só reconhecendo a valor do risco que esta busca comporta é possível às mulheres e aos homens construírem uma vida com um sentido ético e, portanto, plenamente humana.

O parágrafo anterior adaptei-o de um texto de 1992 de um grupo de católicos estudantes, não interessa agora sobre quê. Interessa para sublinhar, como o jovem Ratzinger o fez, o óbvio: é na liberdade de voto que se traduz um projecto de liberdade exigente, sério. Por isso, votar Sim, no próximo dia 11, à despenalização da mulher em caso de aborto, não é ser favorável ao aborto, não é querer o aborto liberalizado, é procurar em consciência resolver um problema que dia após dia se coloca dolorosamente, sem leviandade, às mulheres.

Podia a acabar invocar Santo Agostinho que, no seu tempo, escreveu: «A grande interrogação sobre a alma não se decide apressadamente com juízos não discutidos e opiniões imprudentes; de acordo com a lei, o aborto não é considerado um homicídio, porque ainda não se pode dizer que exista uma alma viva em um corpo que carece de sensação uma vez que ainda não se formou a carne e não está dotada de sentidos» [referido por Jane Hurst, "A História das ideias sobre o aborto na Igreja Católica", Publicações CDD, São Paulo, 1999]. Mas serve-me de pouco este debate, não é isto que se votará a 11 de Fevereiro. O que quero acabar com o meu voto é a penalização criminal da mulher. E para isso prefiro chamar São Tomás de Aquino, que nos lembrou que (citado ontem por frei Bento Domingues, no Público) só somos verdadeiramente livres quando evitamos o mal, porque é mal, e fazemos o bem, porque é bem, não porque está proibido ou mandado.

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Se fosse para levar a sério

Esta sinistra pseudo-proposta de penalizar as mulheres que, voluntariamente interrompem a gravidez, com "serviço cívico" em infantários e afins em vez de prisão é de uma violência arrepiante.
No fundo, o que se "propõe" – claro está que isto não passa de mais uma cortina de fumo - é um violento aumento da pena para as mulheres que abortam.

Eu não diria melhor

«Para além de ser desonesta nesta fase da campanha, lançando confusão em favor do «sim» junto do eleitorado, a proposta para após o referendo « despenalizar na Assembleia da República » é totalmente ilegítima, caso vença o «Não»: ou a vontade das pessoas que respondem áquela pergunta é respeitada, ou então não valeria a pena sequer fazer a pergunta. Não se pode andar a brincar e a gozar com as pessoas.» Blogue do Não

Segunda volta.

Sempre imparcial, a RTP resolveu dedicar um novo episódio do Prós e Contras ao referendo sobre a despenalização do aborto. Essa iniciativa é claramente uma oportunidade para nós. Vamos ver se é desta que conseguimos marcar alguns pontos perante o doutor Aguiar Branco, a Kátia Guerreiro, o Fernando Santos, a jornalista Laurinda Alves e os outros inteligentes defensores da criminalização.

Pateticamente sós

"Ora, se a ética é afastada numa sociedade amoral, porque não, então, legalizar a poligamia (e também a poliandria, para ser politicamente correcto), onde ela ocorra com alguma frequência? Na Holanda foi recentemente tentada a criação de um partido pedófilo..." Sarsfield Cabral

Alguém um dia sugeriu que perde a discussão quem primeiro acusa o outro de ser um nazi. Proponho também a derrota na secretaria ou no mínimo sanções disciplinares a quem numa discussão recorra ao exemplo da pedofilia quando o tema é outro. Pacheco Pereira já dissecou o comentário de Sarsfield Cabral, explicando o truque de ir da IVG à pedofilia fazendo da poligamia pivot. Leitura recomendada.

Tentar perceber os fanáticos do costume é uma perda de tempo, mas Sarsfield Cabral e Lobo Xavier, entre outros, parecem ser vozes insuspeitas, homens cultos e ponderados, a salvo de fanatismos cruéis e cegueiras ideológicas. Pode ser. Não tentarei aqui o costumeiro exercício da colagem a César das Neves. Limito-me fazer quatro observações:

1. Na Europa, só Portugal, Malta, a Polónia e a (República da) Irlanda não legalizaram (ou não despenalizaram com efeitos práticos, como é o caso da Alemanha* e da Espanha) a IVG até um dado período de gestação.

2. A França, a Inglaterra, a Alemanha*, a Itália e os EUA legalizaram (na prática) a IVG.

3. A Civilização Ocidental, que foi beber aos Gregos, a Roma, ao Catolicismo e ao Judaísmo, que se fez com a Renascença, os movimentos protestantes, o Parlamentarismo, o Iluminismo, o Liberalismo, a Ciência, os grandes filósofos, os artistas europeus e americanos, tem múltiplas facetas e geografias, mas a sua História dos últimos 7 séculos poderia ser escrita sem grandes omissões a partir da História da França, da Itália, do Reino Unido, da Alemanha e dos EUA. São as nossas referências culturais, políticas, enfim, civilizacionais.

4. O denominador comum mais forte entre Portugal, Malta, a Polónia e a Irlanda é o Catolicismo.

Se ninguém discorda no essencial das quatro afirmações anteriores, deixa de ser possível ripostar com a acusação de anticlericalismo primário ou relativismo quando digo que a moral que Sarsfield Cabral teme que se esteja a perder é a moral de cunho católico, uma moral que não é absoluta nem única, como se aprende em qualquer livro de introdução às religiões e com a Filosofia, nem tem grande legitimação histórica, como se constata pelas atrocidades que os católicos cometeram em nome da sua fé. Creio também ser legítimo concluir o seguinte: a afirmação - a afirmação, repito - ou a sugestão de que caminhamos para o descalabro civilizacional se aceitarmos a legalização da IVG até às 10 semanas é ignorante, desonesta, estúpida, sectária ou xenófoba (mas não são mutuamente exclusivas). Uma patética hipérbole.

Para que fique claro: uma IVG legalizada não é condição suficiente para se chegar à civilização e uma simples aproximação por mimetismo seria desaconselhada e poderia ter efeitos contraproducentes. Gostaria até de pensar - as desonestidades de que somos capazes... - que este atraso de uma geração que Portugal acumula pode ser sublimado a 11 de Fevereiro e vir a passar à História como o período de amadurecimento necessário para se chegar de uma forma natural onde os países que são as nossas referências chegaram antes. Começa é a não haver pachorra para a ideia de que a legalização da IVG conduz à barbárie.

Aliás, é algo irónico andarmos a discutir os valores dos católicos, quando o próprio Catolicismo, com o seu atrito natural à educação sexual e à contracepção, contribuí a para agravar o problema do aborto. Nem o Cardeal José Policarpo escapou a esta contradição. Mas eu sei que numa discussão sobre o aborto perde também quem primeiro usa uma certa palavra e é melhor - ... sim, começa por "h" - ficarmos por aqui.

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À atenção do PSD

Quem visse o tempo de antena do PSD de ontem ficaria convencido de que na questão (que não vai a Referendo, adiante-se) do início da vida humana reina a unanimidade na classe científica e, muito particularmente, na classe médica. Não quero acreditar que um partido como o PSD assuma estas afirmações por descuido, logo só posso concluir que estamos perante um óbvio caso de manipulação intencional. Veja-se, a este respeito, a notícia sobre a conferência ocorrida este fim-de-semana patrocinada pela OM*:

A conferência sobre «Quando começa a vida» terminou este sábado, em Lisboa, sem consenso quanto à resposta à pergunta e com o bastonár io da Ordem dos Médicos a garantir ser dever destes profissionais «proteger a vida», noticia a agência Lusa.

«Os médicos continuam a defender a vida desde o seu início», afirmou o Bastonário da Ordem dos Médicos (OM), Pedro Nunes, no encerramento do encontro de dois dias, afirmando que essa definição de início da vida depende da «convicção individual» de cada médico.

Que tal se se deixassem de apresentar como verdade incontestável algo que está longe de o ser? Seria, pelo menos, a demonstração de que respeitam a inteligência dos portugueses. Para não falar já do profundo desrespeito que tempos de antena semelhantes representam para todos quantos, no PSD, pensavam que seria assumida, tal como tinha sido anunciado anteriormente, a neutralidade nesta questão.

* sobre esta conferência, podem encontrar mais informações no site dos Médicos Pela Escolha

Golpe de rins

Mais uma novidade do Não: agora é a ideia de que as leis se aplicam mesmo quando não são aplicadas. Ou seja, que as penalizações estabelecidas servem para prevenir e dissuadir os comportamentos proibidos - e dessa forma estão sempre a ser cumpridas. Todos conhecemos a sua grande eficácia...