Quinta-feira, Fevereiro 8
não se marimbe, vote -- mesmo se se está a marimbar
Ouvi isto num debate a que assisti esta semana: 'Estou-me a marimbar para as mulheres, se vão presas ou não. Quero saber é do que está lá dentro'.
Gostaria de chamar a atenção do senhor que disse isto e de todos os que como ele 'se marimbam para as mulheres' para o facto de não ser possível querer saber do que está 'dentro' das mulheres sem querer saber das mulheres. Além disso, queria alertar este senhor para o facto de que, quando se põe a hipótese de enviar as mulheres para a prisão, ou seja, quando elas estão a ser investigadas e julgadas, 'aquilo que está lá dentro' já lá não estar.
Querer saber do que está ou pode vir a estar 'dentro' das mulheres implica pois querer saber das mulheres. Não há outra maneira. É precso querer saber das mulheres antes, durante e depois. É preciso querer saber o que pode fazer a diferença entre a realidade que temos, a dos milhares de abortos clandestinos, dos milhares de complicações abortivas, das mulheres e raparigas mortas e da meia dúzia de julgamentos, e uma outra realidade.
Na Europa, ao contrário do que uma campanha mentirosa quis fazer crer, a despenalização do aborto nas primeiras semanas de gestação contribuiu para uma diminuição/estabilização do número de abortos. O acesso a aconselhamento médico, o 'querer saber das mulheres' fez a diferença que a ameaça da vergonha, dos julgamentos e da morte não fez. Há ironias assim: domingo, mesmo se se está marimbar para as mulheres e se realmente quer saber 'do que está lá dentro', o seu voto só pode ser Sim.
Teste de personalidade
A. Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?
__ SIM ___ NÃO
B. Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente NÃO autorizado?
__ SIM ___ NÃO
C. Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras TRINTA semanas, em estabelecimento de saúde legalmente NÃO autorizado?
__ SIM ___ NÃO
D. Concorda com a PENALIZAÇÃO da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente NÃO autorizado?
__ SIM ___ NÃO
Soluções:
Se respondeu sim à pergunta A, você é um moderado - vote Sim no referendo.
Se respondeu sim à pergunta B, você é um indeciso - vote Sim no referendo.
Se respondeu sim à pergunta C, você é um assim-não - vote Sim no referendo.
Se respondeu sim à pergunta D, você é um radical - vote Não no referendo.
A Não-Hipótese de Estrasburgo
Estrasburgo é sede do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Este Tribunal, para os menos atentos, visa proteger os direitos humanos e, tal como a anterior Comissão Europeia dos Direitos do Homem, tem mostrado uma progressiva abertura para queixas de mulheres sobre casos de condenação por práticas de aborto e para considerar como conformes àquela Convenção leis que despenalizam a IVG durante as primeiras semanas. A conclusão natural é que, uma vez esgotados os meios internos, em caso de vitória do "Não" uma mulher portuguesa condenada por ter cometido um aborto pode apresentar queixa em Estrasburgo.
Mas será que o faria? A hipótese da queixa a Estrasburgo só mostra como estamos na presença de uma luta assimétrica. Quando uma mulher coloca o Estado em tribunal, se o assunto é o aborto, a única garantia que tem é a da internacionalização da devassa da sua privacidade. Fraco consolo. Estes recursos legais criam apenas uma ilusão de justiça, pois o julgamento em si já é uma pena. O desequilíbrio é total, porque uma mulher tem sempre mágoa e por vezes vergonha; já um Estado, que dilui a responsabilidade individual na representação abstracta de um colectivo, é naturalmente desavergonhado.
A progressiva abertura para estas questões está documentada num trecho do livro A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição, Coimbra Editora, 2005, de Ireneu Cabral Barreto (que entre outros méritos não me baptizou com o seu nome próprio):
«4. O direito à vida refere se, no contexto, apenas à vida física e mental, ao direito a não ser morto, a não ser privado de vida (111) - Decisões de 10 de Julho de 1984, Queixa n.º 10 044/82, Déc. Rap. 39, pág. 162, e de 7 de Abril de 1997, Queixa n.º 28 955/95, Déc. Rap. 89 A, pág. 98 (112).
A disposição deixa em aberto toda a problemática relacionada com o princípio e o fim da vida que é objecto de protecção; coloca-se, assim e desde logo, a questão do momento do começo da vida, imbricada com os problemas do destino do ovo fecundado e da interrupção da gravidez.
O Pacto (artigo 6.º, n.º 5) e a Convenção Interamericana (artigo 4.º, n.º 5) proíbem a execução da pena de morte em mulheres grávidas, o que poderia inculcar a ideia de que o feto beneficia do direito à vida; mais, a Convenção Interamericana (artigo 4.º, n.º 1) protege a vida humana desde a concepção.
No entanto, o texto da Convenção é omisso a este respeito e os trabalhos preparatórios não ajudam a clarificar a questão (113).
A doutrina está dividida e não houve ainda oportunidade de adopção, por parte dos órgãos da Convenção, de uma posição definitiva acerca desta matéria; mas é possível concluir que o nascituro não beneficia da protecção dada por este artigo 2º -Acórdão VO, de 8 de Julho de 2004, R04-VIII. pág. 39, § 75, e pág. 42, § 80.
A Comissão, na sua Decisão de 29 de Maio de 1961, na Queixa n.º 867/60, Ann. Conv. vol. IV, pág. 271, recusou se a apreciar uma lei norueguesa que permitia a interrupção da gravidez, por não se considerar competente para, em abstracto, conhecer a compatibilidade de uma lei com a Convenção.
A Queixa n.º 7045/75, de conteúdo similar, relativa a uma lei austríaca sobre o aborto, foi também declarada inadmissível pela Comissão - Decisão de 10 de Dezembro de 1976, Déc. Rap. 7, pág. 87.
Contudo, uma outra Queixa, a n.º 6959/75, caso Buggeman e Scheuten, onde se criticava a lei alemã sobre o aborto, apresentada por uma associação e duas mulheres, ultrapassou a fase da admissibilidade, mas foi apenas examinada sob o ângulo do artigo 8.º para se concluir que não havia violação - Decisão de 19 de Maio de 1976 e Relatório de 12 de Julho de 1977, Déc. Rap. 5, pág. 103, e Déc. Rap. 10, pág. 100, respectivamente.
Mais tarde, na sua Decisão de 13 de Maio de 1980, Queixa n.º 8416/79, Déc. Rap. 19, pág. 244, apreciando uma lei inglesa sobre o aborto, a Comissão respondeu negativamente ao direito absoluto à vida do embrião, invocando, nomeadamente, que esse direito sempre estaria condicionado ao direito à vida da mãe; e, como no caso concreto, a questão se resumia ao conflito entre a vida da mãe e a do feto, a Comissão concluiu que, nessas circunstâncias, o aborto estava coberto por uma limitação implícita do direito à vida do feto para salvar a vida da mãe.
Na sua Decisão de 19 de Maio de 1992, Queixa n.º 1700/90, Déc. Rec. 73, pág. 155, a Comissão, reconhecendo embora que a expressão qualquer pessoa dificilmente pode ser aplicada à criança a nascer, assinalou que os Estados têm a obrigação de tomar medidas adequadas à protecção da vida, não estando excluído que, em certas condições, o feto deva ser protegido.
E face às divergentes legislações sobre a interrupção voluntária da gravidez, a Comissão admitiu que se tratava de um domínio delicado, onde os Estados gozam de um certo poder discricionário face à Convenção.
Por seu turno, o Tribunal dispensou-se de apurar se a Convenção garante o direito ao aborto ou se o direito à vida, reconhecido neste artigo, abrange igualmente o feto - Acórdão Open Door e Dublin Well Woman, de 29 de Outubro de 1992, A 246 A, pág. 28, § 66.
Na Decisão de 5 de Setembro de 2002, Queixa n.º 50 490/99, R02 VII, pág. 445, - queixa apresentada pelo marido que pediu, sem sucesso ao nível interno, uma indemnização à sua mulher pelo facto de esta ter abortado apesar da sua oposição -, o Tribunal não se comprometeu sobre a questão de saber se o feto pode beneficiar da protecção concedida pela primeira frase deste artigo, porquanto, no caso, o aborto fora praticado para proteger a saúde da mulher, mostrando se observado um justo equilíbrio entre a necessidade de assegurar a protecção do feto e os interesses da mulher».
"Passados 9 anos temos uma segunda oportunidade. A questão é se vamos continuar a assobiar para o lado e fingir e ignorar uma realidade de discriminação social e um problema de saúde pública que afecta milhares de pessoas ou assumir uma atitude responsável para a resolução do problema.(...) Acredito que as nossas leis devem corresponder à realidade que temos e não a discussões em abstracto sobre um mundo ideal.Por isso vou votar Sim no próximo dia 11." Jovens pelo Sim
Não vos quero lá
Não sei se é por ter sido a primeira canção que cantei à minha filha. Não sei se é por ser do Sérgio Godinho. Sei que este post do blogue do não, a que o Sérgio respondeu muito bem, me deu a volta ao estômago. É provável que o estômago tenha voltado ao mesmo lugar, de tantas voltas que já deu nesta campanha. Mas esta apropriação permanente, não da música do Sérgio, mas do dia mais maravilhoso das nossas vidas, esse dia em que a nossa vida (pelo menos a minha) passou a fazer todo o sentido, não me deixa revoltado. Deixa-me vazio. Isso mesmo: vazio. Esse dia em que pela primeira vez tudo o resto se tornou irrelevante. Esse dia em que nos ultrapassamos em generosidade. Muito para lá do que imaginávamos. Esse dia em que uma alegria, uma serenidade e um medo imenso de falhar toma conta de nós com a força da primeira paixão. Como se não fosse possível, como se fossemos loucos em atrevermo-nos a tanto.
Como podem tornar bandeira política uma coisa tão imensa, tão pessoal, tão intima? Como? Que falta de pudor. É isso que me deixa vazio. Como se alguém tivesse entrado em minha casa, na casa de cada um de nós, e tivesse revirado as gavetas.
É o mistério e a delícia, a delícia, sim, a delícia, de cada um de nós, para cada um de nós, que usam como bandeira. Não saberão que não é a lei, não é o código penal no seu artigo 140º, 142º e seja o que mais for, não é um juiz, não é ninguém que nos diz da delicia desse mistério. É nosso. Só nosso. De cada um de nós. Não, não quero o Estado no que de mais pessoal e íntimo passou e passará pela minha existência. Pela nossa. De cada um de nós. Nem as cruzadas dos bons costumes, nem as inquisições morais. É nosso. É meu. Esse momento. Saiam dele. Não vos quero lá.
"Em suma, pelo direito à felicidade das crianças que nascem, e o direito à dignidade das mulheres - eu devo votar pela liberdade que deve ser concedida às mulheres de fazerem, em consciência, a sua escolha." Maria Barroso, Público 8/02
O lugar de uma mulher que aborta é num hospital, e não numa prisão ou numa esquadra
Como cidadão, não posso deixar de encontrar no referendo uma clara possibilidade de alterar uma legislação, que a meu ver tem implicações para o papel do Estado na vida das pessoas. Ao Estado, em vez da tarefa estritamente repressiva (defendida pelo voto no Não), deveria caber uma tarefa de regulação, de estabelecer os limites para o qual as sociedades consideram legítimo o recurso à interrupção voluntária da gravidez. Votar Não no referendo permite que as mulheres continuem a incorrer em pena até 3 anos de prisão. Negar às mulheres, a possibilidade de escolherem fazer uma interrupção voluntária da gravidez legal, segura, com aconselhamento médico, em boas condições sanitárias é lesar profundamente a sua saúde e os seus direitos. E é empurrá-las para a clandestinidade. Em nome de uma moral, que nem todas/os partilham e que se opõe à suas escolhas, à sua saúde, à sua vida. O lugar de uma mulher que interrompe uma gravidez é num hospital, e não numa prisão ou numa esquadra.
É preciso alterar isto, é preciso votar SIM. Até para não ouvirmos nem lermos, como nos mostrou o Público de dia 18 de Janeiro, a humilhação e a vergonha, a que as mulheres julgadas na Maia foram expostas. Humilhação e vergonha nossas também. colectivas. Como dizia uma delas na reportagem:
"Sentia-me tão pequena e não cabia em lado nenhum. Os juízes, ali sentados, a acusarem todas por igual. Puseram-nos todas juntas, como se fôssemos animais, para dizer: "Fizeram um pecado". Não nos conheciam de lado algum e julgaram-nos por uma coisa tão séria, tão íntima. Porque fazem isto às mulheres? "
Aquilo em que acredito
Vou votar SIM porque acredito que ter um filho é, provavelmente, a decisão mais importante, de efeito mais absoluto e duradouro sobre a nossa vida que podemos tomar, mulheres e homens. Vou votar SIM porque acredito que um filho não pode ser um castigo ou uma condenação, é a mais íntima e séria das nossas escolhas. Vou votar SIM porque acredito que a lei do Estado não deve servir para impor uma decisão tão privada e grave aos seus cidadãos, porque acredito que o amor e a família não se criam com tribunais e polícias. Vou votar SIM porque acredito que nenhuma mulher deixa seguir uma gravidez que não quer só porque o Estado manda; e portanto proibir o aborto não o impede de existir, apenas o torna clandestino, descontrolado e ao sabor de um mercado selvagem. Vou votar SIM porque acredito que, se houver a possibilidade de abortar de modo seguro e legal em Portugal, se diminuirá muito esse aborto clandestino, muito mais perigoso e injusto. Vou votar SIM porque a lei que existe não salva nem protege nada nem ninguém, antes condena tudo e todos. Vou votar SIM também porque não quero que mulheres que querem filhos abortem apenas por medo e solidão. Vou votar SIM porque acredito que uma mulher sem medo de ir ao hospital toma uma decisão melhor, mais informada e apoiada.
E sobretudo, VOU MESMO VOTAR (no SIM, já tinha dito?), porque se acreditar em tudo isto e não for às urnas no domingo estou a trair-me a mim e, pior, à minha filha, que um dia vai ser também uma mulher portuguesa.
Teresa e as outras
"Teresa morreu a três meses do primeiro referendo para despenalizar o aborto. Não podia esperar. De qualquer forma, de nada lhe serviria. A lei manteve-se até agora. Ninguém sabe quantas mulheres morreram desde então. Os movimentos pelo Sim falam em 13 mortes na última década, mas esses números são impossíveis de confirmar oficialmente.
Os dados governamentais indicam apenas que o aborto inseguro é responsável por cerca de 19% da mortalidade materna, que vitima 5 mulheres por cada 100.000 nados-vivos. Ou seja, morrerá, todos os anos, uma portuguesa na sequência de um aborto ilegal. É a principal causa de morte materna, na adolescência, e a segunda causa, na idade adulta, sendo ainda um dos principais motivos de complicações em gravidezes posteriores."
Excerto da reportagem "Vidas interrompidas" na Visão de hoje
Faz todo o sentido recordar de novo o discurso proferido por Simone Veil perante a Assembleia Nacional francesa em 1974
"Espalhem a Notícia" ou "Chamem a Polícia"?
Acabo de receber, por vários amigos, a notícia: um "blogue do não" usou nas suas páginas uma canção minha, para, em ultima análise, promover os seus pontos de vista em relação ao referendo de Domingo.
Para mim, não é um assunto novo. Muitas vezes, canções inteiras foram usadas em contextos ampliados — e muitas vezes amplificados. E muitas outras se apropriaram de frases minhas para dizer — e pensar — outras coisas. Goste ou não goste (e gosto várias vezes) acho que tudo isso faz parte de qualquer acto criativo. Se não o quisesse expor a esse risco, guardava-o na gaveta.
Só que há limites, claro. Desde já, neste caso, enganaram-se, não só na intenção, mas no próprio título da canção. Em vez de "Espalhem a notícia" deviam ter posto (e postado) "Chamem a polícia"...
A minha canção é uma elegia à qualidade da vida, e à alegria consciente de dar à luz um novo ser. Nada que se pareça com humilhação, falsas promessas de apoio a gravidezes indesejadas, sugestões de trabalho comunitário para substituir penas de prisão e outra pérolas que tais.
E sim, sim à vida que a canção exalta e reconhece. Espalhem a notícia.
Sérgio Godinho
Só porque sim
Maria Velho da Costa
Não é o direito à vida humana que os defensores do Não à Interrupção Voluntária da Gravidez propõem. Se assim fosse, ter-se-iam insurgido com as mesmas altas vozes à Interrupção Voluntária do Iraque perpetrada em nome do Bem por outras altas e cristianíssimas vozes.
Os defensores do Não defendem o direito a punir ainda mais o sofrimento dos mais fracos: a mulher incompetente noutras formas de contracepção, geralmente desgraçada, a criança desgraçada que o feto indesejado certamente seria.
O maior valor humano não é a vida sob todas as suas formas. Se não, por que não proteger e não extirpar células neoplásicas, o cancro, células das nossas células, tumor e vontade de Deus?
A compaixão pela dor do outro é o maior valor humano. Quem não a tem por uma mulher doente, ou esgotada ou simplesmente carente e ignorante, não a finja por um feto condenado à dor. Adopte uma criança completa no Sudão.
E quanto à classe médica, que traz ao assunto tanta autoridade, a súmula do juramento de Hipócrates é noli nocere, não causar dano. Não fazer sofrer.
A defesa da vida, a qualquer preço, pode ser a defesa da morte.
Na vã guarda
Dizem os do "Não" que a penalização da IVG coloca Portugal na vanguarda da defesa da vida, ao contrário de países como a Suécia, a Alemanha ou os Estados Unidos. Mas há quem esteja mais à frente: Angola, por exemplo. Em Angola, dez por cento das mortes maternais têm origem no aborto clandestino e a pena de prisão pode ir até aos oito anos. A polícia tem até piquetes nos hospitais para interrogar as mulheres que chegam com complicações pós-aborto . Temos muito a aprender com Angola. Se não continuarmos na vanguarda, ficaremos pelo menos na vã guarda.
SIC-Não?
Parte de um mail que recebi: «... o que se passou esta semana com a telenovela brasileira da SIC "Páginas da Vida" é um escândalo. Nunca davam ao Sábado e Domingo, começaram a dar de repente…percebe-se agora porquê, os episódios que estão agora a ser transmitidos referem uma situação de aborto e com o tema a ser colocado numa perspectiva a favor do NÃO (mesmo que fosse a favor do SIM, seria igualmente inadmissível)».
Padre de Lamego vota «sim»
«Citado pela agência Lusa, o padre Manuel Costa Pinto, de 79 anos, defende que a mulher deve ser libertada «dessa coisa vergonhosa que é o julgamento e os exames à sua vagina» e também do castigo da prisão e deu o exemplo de Jesus Cristo, que perdoou a adúltera.
«Jesus disse "aquele que estiver sem pecado que atire a primeira pedra" e ficou apenas ele e a mulher. Então acrescentou: "eu não te condeno, vai, e não tornes a pecar". O nosso Magistério, papas e bispos, não podem esquecer isto», frisou .»
O resto é conversa
Quem pensa que tem o direito de chamar criminosa a uma mulher que interrompe a sua gravidez até às dez semanas, deve votar não ou abster-se.
Quem pensa que não tem esse direito, deve votar sim.
Coisas Simples
No século XXI, o extraordinário progresso da biologia e da medicina alterou radicalmente as condições de vida e de morte da humanidade. Este progresso científico reflectiu-se na alteração de alguns conceitos morais e sociais, e na necessidade de actualização da ordem jurídica face a questões novas.
Mas este progresso científico não foi interiorizado pela sociedade portuguesa na sua globalidade e nomeadamente na questão do aborto assistimos por parte dos pró-penalização a um esgrimir de argumentos supostos científicos misturados com outros de natureza moral/religiosa, sempre numa óptica redutora e maniqueísta que desvia a atenção do que realmente vamos decidir nas urnas.
O que vamos decidir no referendo de domingo é simplesmente uma questão de Direito. E a penalização do aborto é a materialização de valores que não têm lugar no Direito Penal de um estado moderno.
Desde o Iluminismo os filósofos defendem dever a ética que subjaz ao Direito ser fundamentada não em valores religiosos mas sim na compreensão da natureza humana. E a compreensão da natureza humana diz-nos que é utópico pensar que a nossa seja uma sociedade ideal, em que não existem gravidezes indesejadas ou em que todas as mulheres têm condições socio-económicas para levar a termo uma gravidez indesejada. Mas o aborto clandestino e as mulheres mortas ou com problemas de saúde em consequência das deficientes condições em que esses abortos clandestinos se realizam são realidades incontestáveis.
Despenalizar a IVG em estádios precoces é a única forma de diminuir a violência contra as mulheres e a própria sociedade no seu conjunto. E não implica a defesa incondicional ou leviana do aborto, apenas reconhece que é uma prática a que a criminalização não obsta!
Assim, apenas o SIM permite salvar vidas, humanizando e permitindo que uma prática - que, queiramos ou não, é uma realidade - se realize em condições dignas e seguras. E simultaneneamente permite identificar os grupos de risco para actuar a montante nas causas subjacentes a gravidezes indesejadas, nomeadamente falta de informação e/ou crença em lendas urbanas sortidas. Tais como serem eficientes os métodos «naturais» de contracepção, não se engravida na primeira vez ou não se engravida quando se está a amamentar!
Um Direito Penal assente numa moral religiosa apenas se verifica em teocracias. Num estado laico todo e qualquer ramo do Direito deve ser livre de concepções religiosas ou morais. Num Portugal que se quer integrante do mundo civilizado, o Direito não pode ser refém da religião ou da moral.
Um Direito que não se consiga separar da religião - ou da ideologia política - corresponderá apenas a um conjunto de costumes, dogmas, crenças religiosas e/ou atitudes populares convertido em prescrições autoritárias que corresponde a uma perversão grave dos princípios que supostamente regem a nossa sociedade.
A tutela penal é sempre ultima ratio, não a banalizemos com questões mais ou menos religiosas, morais ou culturais que estão longe de ser universais.
Assim, mesmo quem considera o aborto «imoral» deve votar SIM no referendo de despenalização. Caso contrário estará a impor a sua moral pessoal a toda a população votando ser crime o que considera «imoral». Violando todos os princípios em que assenta uma civilização moderna!
Coisas simples: para eventuais indecisos
1 – Creio que todos concordamos: em Portugal há demasiadas gravidezes indesejadas. Estando elas, como sabemos, na origem das práticas abortivas, deveriam ser estreitadas a um mínimo. Tal estreitamento, parece consensual, passa por coisas como a promoção da educação sexual, pelo acesso aos contraceptivos e por apoios vários que ajudem a tornar a maternidade não esperada uma possibilidade tendencialmente mais acalentada (isto implica confrontar carências económicas, a pressão do mercado de trabalho, o estigma da maternidade independente e a uma série de condições que hoje fazem da maternidade/paternidade um desafio tantas vezes heróico).
2- A diminuição do fenómeno da gravidez indesejada, assim sendo, não depende tanto de um um certo assistencialismo voluntário ─ sem dúvida, uma salutar expressão da vitalidade sociedade civil. Requerem-se sobretudo transformações sociopolíticas que façam cerco às condições que, antes e depois da concepção, concorrem para a existência de gravidezes não desejadas.
3- No entanto, também o sabemos: quaisquer que sejam as transformações nenhum país vinga reduzir a zero as gravidezes indesejadas. No muito do que a sociedade e o Estado podem fazer para as evitar, há uma coisa que não pode, um limite interventivo: não pode obrigar uma mulher a levar uma gravidez indesejada até ao fim sob qualquer ameaça ou estigma criminal.
4- Portanto, a alternativa oferecida por uma sociedade comprometida em reduzir o aborto não pode ser uma criminalização que, sem nada diminuir, apenas empurra as mulheres para uma indústria informal onde vivifica o aborto sem freio.
5- A alternativa, aberta pelo Sim no próximo referendo, permite duas coisas: a) que as mulheres de toda a condição económica interrompam gravidezes não desejadas em condições de higiene e segurança, b) que surjam estruturas de apoio e aconselhamento que, num último reduto, ajudarão a garantir que o aborto só acontece quando é de facto uma escolha incontornável da mulher.
6- A passagem do aborto da clandestinidade à transparência da regulação estatal (não penal), além de conferir escolha digna à mulher, irá permitir que todos quantos vêem num aborto um mal tenham argumentos e números para mobilizar o Estado a diminuir as gravidezes indesejadas (e logo o aborto).
A Interrupção Voluntária da Gravidez versus A Não -Interrupção Consciente da Existência
Não quero ter filhos. Em pleno século XXI, no seio de uma sociedade evoluída, esta afirmação deveria ser escutada com todo o respeito e um mínimo de atenção.
Se é verdade que pela nossa constituição biológica e desde que saudáveis, nos é possível ser progenitores, não menos verdade é que nem todos têm a capacidade ou inclinação para o ser. A tese de que o fim último dos Homens está na sua reprodutibilidade não é para todos fundamental, nem sentida como essencial. Do mesmo modo, a ideia de que a formação ou realização pessoal das mulheres, passa inevitavelmente pela maternidade, tantas vezes tida como uma "quase obrigação" social, assenta em argumentos muito duvidosos, diria mesmo, primitivos e de uma grande violência psicológica. A dádiva do amor dos homens e das mulheres nas sociedades contemporâneas tem muitos caminhos.
(continua aqui)
Contributo da Xana