Quarta-feira, Janeiro 31

Quarta-feira, Janeiro 31

TSF: Fernanda Câncio enrola Laurinda Alves num tapete de contradições



O estúdio da TSF depois do debate de ontem


"Ó Fernanda, não me queiras apanhar em contradição...": ouça aqui.

E esclarecedor...

... da forma fundamentada como os movimentos do Não prestam informações (fidedignas, juram eles). Acho este naco de prosa especialmente relevante:

JCN: A maior parte dos processos que citou há bocadinho são processos depois das 10 semanas. Vão-se repetir na mesma
DO: São? Isso é mentira. O senhor leu o processo?
JCN: li, sim senhor, vamos mudar de assunto
DO: Não, não, não vamos mudar de assunto. Eu já ouvi isto para aí 10 vezes

[Daniel de Oliveira apresenta os números relacionados com a idade de gestação das mulheres que foram a tribunal nos vários processos]

JCN: Fizemos uma pergunta ao senhor ministro da justiça e ele disse q não era possível avaliar isso. [Fizeram uma pergunta? mas não tinha dito segundos antes que tinha lido os processos?Ó Senhor Professor, olhe que não lhe fica bem enviezar a verdade]
DO:Eu estou-lhe a ler o acordão

[picardias entre os 2 sobre processos e ministro da justiça]

DO: Isso é um boato. Um boato q os senhores lançaram e que afirmam - como muitas outras coisas - como ciência certa.

(aproveito o mote e continuo à espera que Assunção Cristas tenha a honestidade de pedir desculpas por, num post em que acusava outros de mentirosos, afirmar que não havia processos em tribunal com gestações inferiores às 10 semanas).

Cristalino

«Nós somos contra a lei de 84.»
«Uma mulher violada não deve ser obrigada a educar aquele filho. Mas matar aquela criança só porque a sua origem não é a desejada não é uma coisa aceitável. A adopção é a solução razoável.»
«Eu nunca ouvi ninguém dizer "nós somos a favor desta lei"»
«Esta atitude laxista relativamente ao aborto vai dar uma volta. Nós daqui a uns tempos vamos discutir de novo a lei de 84».
João César das Neves, mandatário do Movimento Diz que Não, TSF, 31 de Janeiro

O porta-voz do "Não"

Eduardo Nogueira Pinto jura a pés juntos que João César das Neves não representa o "Não". A verdade é que não há jornal, rádio ou televisão em que não apareça o abominável Neves a representar o "Não" nos debates em curso — ainda há minutos na TSF… Que eu saiba, não é o Daniel Oliveira que escolhe os porta-vozes do "Não".

De resto, bem vistas as coisas, a pérola de que a interrupção da gravidez será tão normal como o uso do telemóvel não afasta o abominável Neves do que a esmagadora maioria dos adeptos do "Não" vem dizendo por outras palavras. Lembram-se do que Aguiar-Branco (com hífen) passou a noite inteira a papaguear na passada segunda-feira? Só não comparou o capricho ao uso do telemóvel…

TSF: Daniel Oliveira leva César das Neves ao tapete



A força dos argumentos contra o argumento da força


O fundamentalismo de cabeça perdida: ouça aqui.

Os números da OMS

Sociedade Civil

O debate de ontem sobre a despenalização da IVG, em que participei, está aqui. É a entrada "Sociedade Civil" de 30 de Janeiro. Ao longo desta semana outros membros deste blog estarão no mesmo programa.

Diz o Rui, no Blasfémias

«Abominável, Doutor Neves
Pelos «spots» que se foram ouvindo hoje de manhã, parece que o Daniel Oliveira terá brilhado no «Frente a Frente» com o Prof. César das Neves, que irá hoje para o ar, na TSF, a partir das 20.00 h.
Do que me foi dado ouvir, o Doutor Neves insiste na peregrina ideia de que uma mulher grávida por violação terá de conceber sob ameaça de penalização criminal. Esta questão esteve, de resto, em discussão no debate da alteração da lei do aborto de 1983, que conduziu àquela que está actualmente em vigor. O Doutor Neves, ao que me foi dado ouvir, afirma que os partidários do «Não» são maioritariamente contra a lei actual, porque querem excluir a possibilidade do aborto legal nesse caso.

O Doutor Neves, do alto da sua autoridade moral e da sua bondade congénita, só pensa na «pessoa» que ali está, durante as primeiras dez semanas da gravidez, e esquece-se da pessoa da mãe, exposta à violência inominável de gerar um filho nessas condições. O Doutor Neves adianta, generosamente, que estas mães não seriam obrigadas a educar e a acompanhar o filho que a lei as obrigou a ter. Alguém cuidará disso, provavelmente, nos elevados pensamentos do Doutor Neves, o Estado, que é sempre, para estas e outras coisas, o tapete para onde se atira o lixo que se quer esconder. Que bela ideia, Doutor Neves! Na extinta União Soviética não fariam melhor! São estas e outras ideias abomináveis do Doutor Neves, que fazem dele a Lídia Jorge do «Não».»

Rui , no Blasfémias.

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"A lei (...) não pode reflectir apenas uma das partes do debate, que se arroga uma interpretação moral superior e exclusiva sobre a vida. Qual vida? Para mim, a proibição da contracepção e do preservativo defendida pela Igreja pode ser eticamente mil vezes mais reprovável pelas suas consequências humanas do que a liberalização do aborto. Qual vida? A vida do embrião contra a vida das mulheres, das muitas que morrem por abortar em condições clandestinas e indignas? (...)
Sinceramente, não creio que seja a vida que a Igreja defende. Inclino-me a pensar que é o seu dogma e a autoridade para impô-lo. Não é a vida sem defesa do embrião. É a uma concepção da vida que coloca a mulher no lugar inferior da escala, cuja função essencial é a procriação." Público

Mais lógicas (no) do Sim

Depois do já muito comentado 7xSim, publicado no Diário Económico a semana passada, recomendo a lógica do meu Sim, do Sim dele, do Tiago Mendes. A versão (1), mas sobretudo a continuação, postada hoje no Logicamente, Sim.

Uns sabem quando começa, outros quando acaba.

Do lado dos defensores do Não existe uma grande sobranceria e facilitismo ao pretender assinalar, sem mais, o início da vida humana no momento da concepção. Como é evidente, a questão de saber quando começa a vida humana é de extrema complexidade- como já assinalei, e como muitos outros já sublinharam reiteradamente e em diversas circunstâncias. E é complexo sob todos os pontos de vista, desde o biológico ao filosófico. Com a pergunta que vai a referendo não é isso que se pretende determinar. Nem pouco mais ou menos.
Mas os defensores do Não continuam a insistir neste argumento – ainda ontem na SIC Notícias, Matilde Sousa Franco acusava, literalmente, Maria Belém Roseira de ser promotora de "centros de morte". E caiem numa contradição insanável ao aceitar a IVG nos casos previstos na actual lei – ie violação e mal-formação grave do feto. Honra seja feita a defensores do Não, como César das Neves, que se opõem à IVG mesmo nestes casos. Para César das Neves – com quem debati este assunto na segunda-feira na RTP2 – mulher violada deveria ser obrigada a dar à luz. Enfim…é completamente inumano mas, pelo menos, coerente.
Este texto, baseado (um sumário simplificado - o mais pequeno que consegui! ) no ensaio O argumento do Futuro-como-o-nosso de David Boonin (in A defense of Abortion, Cambridge University Press, 2003), não pretende arrumar a questão do início da vida humana que, volto a repetir, nem vai a referendo, nem é simples. Este texto serve apenas para relembrar isso mesmo. Sabemos quando a vida humana acaba. Não sabemos quando ela começa. Dizem uns. Outros dirão o oposto…





Boonin parte de um seminal artigo de Donald Marquis, de 1989 (in The Abortion Controversy, Jones and Barlett Publishers) que defende que o feto humano tem o mesmo direito à vida do que um adulto. Boonin pensa que é desse artigo que emerge a noção de potencialidade mais forte, já que Marquis considera que o feto humano típico tem à frente o mesmo género de experiências futuras que o ser humano típico, e estas experiências têm o mesmo tipo de valor. E é este argumento que Boonin desconstroí com destreza e proficiência. Vale a pena sublinhar, desde já, que o argumento da potencialidade é sempre resvaladiço, já que se A tem direito a C e B é um potencial A, não quer dizer que B tenha direito a C. Por exemplo, se os trabalhadores têm direito a um ordenado, o facto do Zézinho ser um potencial trabalhador, não quer dizer que tenha direito a um ordenado.
Adiante.
Independentemente de sermos do Sim ou do Não, estamos todos de acordo que nos casos B ,C e D da seguinte lista, os indivíduos têm o mesmo direito à vida do que todos nós. A- feto; B- bebé; C- adolescente suicida; D- adulto temporariamente comatoso; E-nós. Para Marquis, o problema do caso A resolve-se assim: "identifique-se a propriedade comum de B a E e verifique-se se existe em A. Se existir, então o aborto é matar". E Marquis diz que essa tal propriedade é o facto de todos os casos, inclusivamente o caso A, terem "um futuro-como-o-nosso", o que apoia o critério da concepção. Este futuro, note-se, é independente da valorização presente (ou apenas futura) que o indivíduo faz das suas experiências. Daí que, mesmo que o adolescente suicida ou o adulto temporariamente comatoso (C e D) não valorizem as suas experiências futuras, seja errado matá-los. Portanto, para Marquis, trata-se de um desejo, presente ou futuro.
Este tipo de desejos, que sucedem agora ou podem vir a suceder mais tarde, chamam-se ocorrentes. E o que Boonin demonstra é que os indivíduos – mesmo temporariamente comatosos – não têm desejos ocorrentes, mas antes desejos disposicionais. Os desejos disposicionais são como as crenças. Posso não estar consciente delas neste exacto momento, mas não quer dizer que não as tenha ou que só as venha a ter mais tarde. Não são, portanto ocorrentes. São disposicionais no sentido que, mesmo que eu não tenha esse desejo agora, neste instante preciso, esse desejo "está lá" na mesma. Por exemplo, o indivíduo temporariamente comatoso deseja, mesmo que não conscientemente, viver. Não é preciso ir buscar a ideia de desejo futuro, portanto. Essa ideia de desejo futuro de Marquis é errada. Lá porque eu hoje, quando acordei, não pensei que estimo a minha própria vida, não quer dizer que eu não a estime ou que só venha a estimá-la quando tal assunto "vier à baila". Do mesmo modo, quando vou dormir, não tenho o desejo consciente de querer continuar a viver, mas tenho esse desejo de qualquer forma. O mesmo se passa num coma temporário. Portanto, o desejo de viver e de um futuro-como-o-nosso não é ocorrente mas sim disposicional.
Nesta altura, deve o leitor notar que a proposta de desejo disposicional de Boonin, explica melhor a propriedade comum de B, D e E porque é mais parcimoniosa, logo melhor. Dispensa o recurso à ideia de desejo presente e desejo futuro. Acima de tudo, a proposta de desejo disposicional de Boonin é melhor porque se a ideia de futuro-como-o-nosso pretende explicar o mal de matar prima facie, então é melhor que o faça em termos disposicionais e não ocorrentes. O que é fraco na argumentação "sempre que tu desejas que eu não te mate, eu não te mato; mas se não desejares isso agora, eu posso matar-te" não é alegar que "tu não desejas isso agora, mas desejarias se te ocorresse", mas antes "o desejo que tu não me mates está sempre presente, mesmo que eu não esteja a pensar nisso, a contemplar esse desejo conscientemente".
Para Marquis, maltratamos o adulto temporariamente comatoso apenas em virtude de o privarmos de algo que ele valorizaria mais tarde, se não o tivéssemos morto. Para Boonin, maltratamos o adulto temporariamente comatoso em virtude de o privarmos de algo que ele valoriza realmente agora.
Relativamente ao caso C, do adolescente suicida, também não será necessário, como faz Marquis, acrescentar desejo futuro para justificar que tem direito à vida. Todos nós, por diversas circunstâncias, podemos ter um desejo actual que, com mais informação ou menos tensão, por exemplo, seria diferente. Um indivíduo que escolhe a estrada A, em vez da B, porque a A é mais bonita e, no entanto, está – sem ele saber – minada, não tem o desejo actual de morrer. Tem o desejo actual de ir por A. Mas se tivesse mais informação, teria o desejo de ir por B, evidentemente. O desejo ideal é B, embora nem sempre tenhamos lucidez suficiente para o formular. Podemos dizer que é errado matar o adolescente suicida sem ter que recorrer ao artifício de Marquis sobre o seu desejo futuro de não morrer. Podemos ver o desejo actual do adolescente suicida apenas como diferente do seu desejo ideal, somente porque não está na posse de toda a informação e "sobriedade". Se ele conseguisse ver que a situação – por exemplo um desgosto de amor – que o faz sofrer agora e pensar em matar-se é temporária e menor quando comparada com a satisfação e felicidade que o futuro lhe poderá proporcionar, não quereria suicidar-se. Os conteúdos actuais dos desejos deste adolescente não incluem o desejo de viver, mas os conteúdos ideais dos desejos dele incluem o desejo de continuar a viver. Não é necessário, portanto, tal como no caso D, acrescentar a clausula "mas desejará mais tarde". No caso C a versão de Boonin é melhor porque a explicação de desejos presentes ideais é mais simples do que desejos futuros actuais.
Desejos presentes ideais é uma versão melhor porque a importância do futuro está já no próprio indivíduo e não só para os outros. O que torna a versão de Boonin moralmente mais vantajosa, também. O caso de um adolescente suicida "especial" demonstra isso com particular acutilância. Imaginemos o adolescente suicida que não valoriza o seu futuro agora. Mas que também – por um qualquer desequilíbrio químico cerebral – nunca irá valorizar. A ideia de desejo futuro actual de Marquis não resiste a este contraexemplo. Este adolescente nunca irá valorizar o seu futuro mas, mesmo assim, é errado matá-lo. Só se compreende que é errado matá-lo através da versão desejos presentes ideais.
Esta segunda versão do princípio do futuro-como-o-nosso produz os mesmos resultados nos casos B a E, mas apresenta vantagens, como já expliquei. A versão de Boonin é superior. Falta mostrar como no caso A, do feto humano, a versão superior de Boonin produz resultados diferentes da versão inferior de Marquis. Porquê? Porque, de só faz sentido atribuir desejos ideais a alguém que tenha desejos actuais. Posso atribuir desejos ideais ao condutor que escolhe "mal" na bifurcação ou ao adolescente suicida, mas não posso atribuir desejos a uma pedra. O feto pré-consciente não tem desejos actuais. Logo, não tem desejos ideais.
Marquis argumentaria (e argumentou perante uma interpelação semelhante feita por um outro autor) que, se os fetos não têm o mesmo direito à vida do que nós porque o feto não é capaz de ter um desejo e o pensamento correspondente ao desejo, então estaremos a excluir também o caso do adulto temporariamente comatoso. Também este, diz Marquis, é incapaz de ter pensamentos. Boonin, uma vez mais, derrota este argumento, com a sua formulação do desejo presente ideal e disposicional. No caso desse adulto existem crenças e desejos disposicionais. E são estes que têm relevância moral.

Artigo também publicado no 5 dias.

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O aborto na Europa - o exemplo do Reino Unido



No DN de hoje, num artigo sobre a lei do aborto na Europa, escreve-se:
"Na Grã Bretanha só pode ser praticada a IVG até às 24 semanas quando a continuação da gravidez envolve um risco maior do que a interrupção para a saúde física e psíquica da mulher ou de qualquer criança da sua família. Para determinar este risco são consideradas as condições do meio no qual a mulher vive. É necessário o parecer de dois médicos."

A este parágrafo, farei uma pequena emenda.

Em Inglaterra, Gales e Escócia o Abortion Act of 1967, permite fazer abortos até às 24 semanas se for para salvar a vida da mulher, por razões de saúde, razões económicas ou sociais. A Grã Bretanha não permite, de facto, "abortos a pedido", mas a razões apresentadas pela mulher são tidas em conta dentro dos parâmetros acima mencionados e avaliadas pelos dois médicos envolvidos.

A lógica é a lógica é a lógica (do tubérculo)

Vem muito de certos sectores histriónicos do Não: um embrião é uma criança em potencial dentro da barriga da mãe; logo, não há nenhuma razão que inviabilize chamar-lhe criança. Admitamos por momentos que este raciocínio é inatacável [ignoremos o potencial e o ar que se lhe deu e tantas outras coisas]. Tão inatacável que até nos propomos alargá-lo de maneira a não deixar de fora um único estádio da vida. Reza(ria) assim: um embrião é um velho em potencial dentro da barriga da mãe; logo, não há nenhuma razão que inviabilize chamar-lhe velho.

Um disparate, um absurdo, manipulação pseudo-desconcertante de demagogo? Mas há algum crime de lesa-raciocínio, de quebra de lógica neste exercício de substituição de palavras de ciclo de vida , criança por velho? Não é justamente aquilo em que se vai tornar que estriba a adopção do nominativo avant la lettre? Um disparate, um absurdo, uma manipulação (mais verosímil), sim, mas do raciocínio original. De facto, superada a relutância inicial a alteração de categorias de ciclo de vida que efectuámos põe a descoberto a operação de pedomorfização do embrião praticada por determinadas fileiras muito activas do Não. Esse engodo (umas vezes subtil outras caricatural outras ainda repelente) destina-se a tornar intolerável descartar o embrião fazendo pairar sobre o acto de rejeição o mais abominável dos crimes, o infanticídio. Acto tanto mais monstruoso e por isso inadmissível quanto o feitor-algoz, a mãe, naturalmente deveria amar o filho que medra dentro de si.

O duplo abuso de linguagem de puerilização do embrião e de maternalização da mulher grávida que transmuda a mulher que decide abortar em um ser desnaturado, dará votos, muitos e muitos votos. Mas, senhoras e senhores paladinos desse Não, não é nem sério nem decente. Um pouco mais de honestidade intelectual e muito mais respeito pelas mulheres que se viram e verão na contingência de abortar (as tais pelas quais asseveram sentir a maior das compreensões e compaixão) não vos fará mal nenhum.

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Interrupção Voluntária da Gravidez: porque vou votar Sim

Vamos ser chamados a votar a despenalização, ou não, da Interrupção Voluntária da Gravidez, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado. Aquilo que o Estado pede aos cidadãos eleitores é que expressem a sua concordância ou a sua renúncia a esta questão. Importa, por isso, perceber o estrito âmbito da pergunta que este referendo coloca aos portugueses. A IVG é um procedimento médico que permite a uma mulher pôr termo a uma gravidez. De acordo com o actual código penal este procedimento é legal em determinadas circunstâncias como em caso de risco de vida da mãe ou do feto, em caso de mal formação extrema e em casos de violação. No entanto, outros casos são considerados crime, puníveis com prisão. É sobre esses casos que os portugueses são chamados a votar. Deve uma jovem adolescente de 16 anos, que está a descobrir a sua sexualidade, que procura chegar à vida adulta, que ainda não pode votar, ser punida por, quando confrontada com uma gravidez indesejada, decidir abortar? Deve uma mãe solteira com um filho e com fracos recursos económicos, que por uma casualidade se encontra grávida novamente e que decide abortar, ser punida? Deve um casal, com uma saudável vida em comum há vários anos, com dois filhos, que decide que não deseja ter mais filhos e que faça um aborto, ser punido pelo Estado? Deve um casal de namorados estudantes universitários, que ainda vivem em casa dos pais, que não tem estabilidade emocional e financeira, que usa regularmente métodos contraceptivos, mas que a rapariga engravida e decide por si própria abortar. Deve ela ser punida, ou ele, por não ter impedido, ou vice-versa. Ela quer ter a criança e ele não. Quem é que deve ser punido pelo Estado? Mais, devem todos estes casos, que são apenas exemplos paradigmáticos no meio de toda uma outra miríade de tantos motivos que podem levar seres humanos à dramática situação de abortar, devem estas pessoas ser ainda mais penalizadas por um Estado autoritário que as obriga a recorrer ao desmancho, à mesinha, à clínica de vão-de-escada, aos métodos inseguros e dúbios, inumanos, selvagens e primários a que hoje milhares de mulheres recorrem para pôr fim às suas gravidezes? Ou, mais ainda, deve o Estado permitir essa estrema desigualdade social que tolera que apenas os detentores de poder económico possam recorrer a clínicas privadas, aqui ou no estrangeiro, e assim em condições médicas seguras terminar uma gravidez?

É sobre isto que o Estado nos pede para votar, sobre estes casos e outros como estes, sobre estas pessoas, estas vidas. Devemos punir estas pessoas, ou não? Devemos punir quem, pelas suas razões, faz um aborto, ou não? Temos o direito de "comandar" estas vidas, ou devemos permitir que cada um escolha de acordo com a sua consciência?

Perante esta questão a sociedade portuguesa surge dividida. Confirmou-se isso diante das últimas sondagens. De ambos os lados, pelo Sim e pelo Não, esgrimem-se razões e agitam-se argumentos. Uns mais sensatos, outros mais demagógicos, uns mais fidedignos, outros mais falaciosos, uns mais racionais, outros mais emotivos, de ambos os lados. Não me interessa discutir, nem sequer rebater, todos os argumentos que têm surgido na praça pública, até porque questões mesquinhas como dinheiros públicos em situações de saúde, ou comparações medonhas com factos históricos, não me parecem ser a forma sensata de debater este assunto. No entanto há determinadas questões que merecem ser reflectidas e discutidas com ponderação, principalmente aquelas que estão no âmbito da pergunta que nos é colocada pelo referendo, que é, relembro, "Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada por opção da mulher, nas primeiras dez semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?"

O primeiro ponto é o da despenalização sobre o qual importa apenas acrescentar, ao que já expus acima, que apenas se pretende introduzir na moldura penal mais uma excepção, às já existentes, permitindo assim que até às dez semanas e em estabelecimento de saúde autorizado o aborto por opção da mulher não seja punido. Neste ponto muitos querem fazer crer que se trata de liberalizar. Recorro ao meu Dicionário Houaiss que esclarece que liberalizar é: dar com liberdade, distribuir com profusão, prodigalizar. Ainda a este respeito, convém também clarificar que o Liberalismo é uma doutrina politica e filosófica que remonta ao pensamento do inglês John Locke (1632 - 1704) e que se baseia na defesa intransigente das liberdades individuais em matérias económicas, politicas, religiosas e intelectuais, em oposição igualmente intransigente contra quaisquer ingerências excessivas ou atitudes coercivas do poder estatal na vida dos indivíduos. Parece-me assim claro que em face da pergunta que nos é posta pelo referendo não existe qualquer tipo de liberalização do aborto, antes pelo contrário, pressupõem-se sim limitações concretas e mais uma excepção ao regime já existente. (O que pensaria Locke do nosso referendo...)

A segunda questão que se tem levantado é a de por opção da mulher. Creio que qualquer pessoa de boa fé compreenderá que este é um problema transversal à sociedade e que afecta todos, homens e mulheres, desde que sexualmente activos. A questão que aqui se coloca é que como não se pretende obrigar ninguém a abortar o consentimento daquelas em quem o procedimento médico é perpetrado é um factor essencial para a sua legitimidade, daí ser fulcral que o aborto seja feito por opção da mulher, isto é, com o seu acordo.

Em terceiro lugar, as dez semanas. Para tudo nas nossas vidas existem prazos, datas limites, fronteiras temporais. Uma idade para votar e para conduzir, um tempo na vida para começar a pagar impostos, uma idade para entrar na escola, um tempo para começar a trabalhar, uma idade para a reforma, um tempo para morrer. O limite temporal que aqui se pretende estabelecer é não só baseado nesta necessidade civilizacional de estabelecer regras e parâmetros mas, também, na avaliação concreta do problema do aborto. O limite das dez semanas que se pretende estabelecer é um dos mais conservadores de todas as legislações europeias. Na Turquia a despenalização é permitida até às 10 semanas. Itália, França, Alemanha, Dinamarca, Áustria, Grécia, admitem a IVG até às 12 semanas. Suécia, Holanda, Finlândia, Reino Unido , até as 20 semanas e mais. O prazo das dez semanas é medicamente aceite como o período de transição entre a fase embrionária e a fase fetal, período esse que levanta menos riscos para a mãe e permite uma adequada ponderação da decisão por parte das pessoas envolvidas, médicos, pacientes e familiares.

O quarto ponto prende-se com a obrigatoriedade do procedimento ser feito em estabelecimento de saúde autorizado. Este é, ao contrário do que se possa pensar, um ponto fundamental nesta questão. Com isto refuta-se não só a acusação de liberalização, uma vez que haverá um controlo por parte do estado sobre as instituições que poderão efectuar tais procedimentos médicos, como ao mesmo tempo se incute na sociedade a ideia de que o Estado não faz uma avaliação moral sobre a questão do aborto e leva as pessoas a procurarem de forma aberta um acompanhamento médico de modo a poderem ponderar, decidir e efectuar com toda a segurança e com total responsabilidade um acto médico que, pela sua natureza, assim o exige.

Por último dois pontos fundamentais que têm sido suscitados, cada um por cada uma das partes: o problema de saúde pública e a questão da "vida". O aborto clandestino é hoje, em Portugal, um gravíssimo problema de saúde pública. A realização de interrupções da gravidez sem acompanhamento médico adequado coloca as mulheres que se sujeitam a estas intervenções em perigo extremo, com consequências físicas e psicológicas gravíssimas, como lesões cervicais, a perfuração do útero ou intestinal, infecções várias, infertilidade e acabando muitas vezes em lesões permanentes, depressões graves e mesmo a morte. A forma mais imediata de combatermos este flagelo é a legalização da IVG, até às dez semanas, por opção da mulher e com acompanhamento médico.

Quanto à questão da "vida", tal como esta é posta pelos defensores do Não no referendo, é ao mesmo tempo e paradoxalmente o mais legítimo e o mais despropositado dos argumentos. Recorro mais uma vez ao meu Houaiss que diz o seguinte: vida s.f. 1 modo de viver; conjunto de hábitos 2 propriedade que caracteriza os organismos cuja existência evolui do nascimento até à morte 2.1 um sistema com capacidade para se submeter ao processo de evolução por selecção natural (que envolve replicação, mutação, e replicação de mutações) 2.2 conjunto de actividades e funções orgânicas que constituem a qualidade que distingue o corpo vivo do morto 3 o período de um ser vivo compreendido entre o nascimento e a morte; existência (...). Continuando à procura de uma definição e, já que sou anglófono, abro o meu Penguin English Dictionary que diz isto: life noun 1a the quality that distinguishes a living and functional being from a dead body or inanimate object. b a state of matter, e.g. a cell or an organism, characterized by capacity for metabolism, growth, reaction to stimuli, and reproduction. Editorial note: the characteristics of living organisms include the capacity to maintain a constant internal environment, to respond to and transform their external environment, to grow and develop, and to self-replicate, producing more or less identical copies of themselves. Living beings are thermodynamically open, deriving energy from their environments in order to sustain and transform themselves, a process known as autopoiesis, or self-creation . Já a Enciclopédia Britânica sintetiza a vida com esta descrição: State characterized by the ability to metabolize nutrients (process materials for energy and tissue building), grow, reproduce, and respond and adapt to environmental stimuli . Bom, e a tentativa de definir o que é a vida prossegue, e existe desde que se criou a linguagem, sendo que se trata de uma das questões mais complexas e vastas do pensamento, atravessando ciências e confundindo pensadores, filósofos, escritores e cientistas.

No que concerne à gravidez, de uma forma muito genérica, e do ponto de vista científico, o desenvolvimento pré natal, está dividido em três grandes períodos, cada um deles caracterizado por diferentes padrões de desenvolvimento e de interacção entre o organismo e o seu ambiente: Primeiro o Período Germinal que tem início quando as células germinais do pai e da mãe se juntam na concepção e que se prolonga até o organismo em desenvolvimento se agarrar à parede do útero, cerca de 8 a 10 dias após a concepção. Depois o Período Embrionário que se estende desde que o organismo se agarra à parede do útero até aproximadamente ao fim da oitava semana, quando os principais órgãos assumem forma primitiva. Por fim o Período Fetal que prossegue até ao nascimento. Todo este processo é extraordinariamente frágil e a qualquer momento pode terminar por uma variedade de razões. Inclusive, um estudo de AJ Wilcox, efectuado em 1999, determinou que 25% de todas as gravidezes terminam ainda no período germinal sendo que nestes casos a interrupção acontece mesmo antes da mulher se aperceber que está grávida. O início do período fetal, entre a oitava e a décima semanas, acontece quando os tecidos básicos e os órgãos surgem em forma rudimentar e os tecidos que formam o esqueleto começam a endurecer. Um aspecto determinante tem a ver com as capacidades sensoriais do feto. Os primeiros estágios de desenvolvimento do ouvido interno, que controla o equilíbrio, acontecem cinco meses após a concepção, aproximadamente na mesma altura o feto responde também a estímulos auditivos, só às 26 semanas o feto responde a estímulos visuais, os hemisférios cerebrais surgem apenas a meio do processo da gravidez.

Estes dados permitem que cada um de nós crie uma concepção sobre o que é para si a vida e quando é que ela surge. Uma concepção que pode ser mais poética, ou mais cientifica, mais filosófica ou mais religiosa, mas uma concepção sempre individual e de acordo com a consciência de cada um. Ora a função do Estado, o papel da sociedade no seu todo, é legislar de acordo com princípios gerais, delimitados por regras genéricas, fora do âmbito da moralidade estrita de determinado credo ou concepção. Compete ao Estado legislar para o indivíduo, mas nunca individualmente. Compete ao Estado legislar para todos os cidadãos, mas nunca para cada cidadão. Mas o que está aqui em causa e no que à questão da vida diz respeito, é que se decidirmos que o embrião é já uma vida de pleno direito, o que eu não concordo, não compete ao Estado escolher sobre que vida tem mais valor se a da mãe se a do embrião . Compete sim ao Estado, na minha opinião, permitir que seja cada um de nós, em consciência, com o beneplácito da sociedade, a fazer essa escolha.

O que este referendo nos pede é que digamos sim ou não à liberdade de cada cidadão fazer essa escolha. É por isso que eu vou votar Sim no dia 11 de Fevereiro.


Pedro de Mendoza em :ilhas

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A questão da vida humana

Debate da noite ontem na SIC Notícias. Partindo do consenso de que há vida em todas as fases do desenvolvimento humano, um senhor de barbas brancas, Pinto da Costa, creio, disse que o que está em causa no referendo "não é quando começa a vida humana; é quando é que a lei deve proteger essa vida humana"; a questão é "se deve ser penalizada a mulher que destrói uma vida humana até às dez semanas".

Sovkhoz uterino

"O útero é nosso!", este deveria ser o texto inscrito em muitas faixas de algumas campanhas que por aí andam. Depois de tantas, e tão variadas, alusões às teorias natalistas como justificação para a não despenalização do aborto (já aqui antes referidas) começo a ter delírios justificados. Portugal transformado numa espécie de grande quinta produtora de carne, cheia de fêmeas reprodutoras. Fica só a faltar uma regulamentação das características do macho cobridor (que isto de ser macho cobridor, a julgar pelo exemplo taurino, não é para todos).

A minha convicção profunda de que existe uma efectiva colectivização uterina é reforçada quando leio o muito debatido Código Deontológico dos Médicos. Tenho liberdade para alterar o meu nariz, a minha boca, as minhas mamas... quando a coisa começa a tocar no útero, e regiões adjacentes, aí já o caso muda de figura e deixo de ser senhora para decidir. O artigo 54º do referido código proíbe aos médicos a prática da laqueação de trompas quando não praticada por justificação terapêutica grave. Sabe tão bem apanhar com estes atestados de menoridade intelectual em domínios tão íntimos, tão pessoais, como a minha própria reprodução.

A sexualidade feminina afastada da procriação é assim tão assustadora? Parece que sim.

O feto

Aguiar Branco disse-o, titubeante, no debate do Prós & Contras: o feto (ou o embrião ou uma criança) de uma mulher grávida por violação não é igual a um feto (ou um embrião ou uma criança) de uma mulher grávida. Não percebi. Dir-me-ão que a esta excepção prevista na lei corresponderá uma enorme fragilidade física e psíquica e emocional de uma mulher violada. É verdade. Mas esse feto é igual ao de uma mulher que engravidou sem ser violada. Uma outra qualquer gravidez poderá, para essa mulher, acarretar uma outra violência física e psíquica e emocional. Não consigo ajuizar, não consigo entrar no íntimo de cada uma, para conhecer a fundo as razões que a levarão ao aborto. Apenas sei que devo confiar nela, na mulher. Ajudando-a, aconselhando-a. Mas respeitando-a. Mais do que isto, estarei a violar a sua consciência. Eu prefiro confiar na vontade da mulher. O aborto não é feito levianamente, sem uma grande dor. No seu íntimo, a causa será justificada e dolorosa. Violar a sua consciência é obrigá-la a recorrer à clandestinidade, que é o que acontece hoje, que é o que acontecerá se o não ganhar.

Só uma perguntinha

Era para, humildemente, como convém, inquirir a Dra. Mafalada do Blogue do Não - que tão insistente e pressurosamente gosta de corrigir tudo e todos ancorada na sua particular interpretação dos cânones jurídicos -, se tem alguma coisinha a dizer acerca da extraordinária opinião do Dr. Bagão Félix, formulada durante uma actividade de campanha do "Não", sobre a expressão normativa contida no art. 1873.º, do Código Civil, «... nascituros não concebido s...» que, assegura o ilustre defensor da penalização das mulheres, caso o "Sim" vença, provocará uma contradição insanável no nosso ordenamento jurídico.
Muito agradecido.

O Modelo Alemão: a real reality check

hk.jpgO modelo alemão para a IVG é híbrido. Parece corresponder a um consenso entre os dois lados, embora um cínico talvez dissesse que consensual talvez só mesmo a discórdia que desperta.

Na Alemanha Democrática a IVG a pedido foi legalizada em 1972. Na Alemanha Federal vigorou a partir de 1976 uma lei sensivelmente parecida com a nossa, visto que a IVG era ilegal excepto pelos motivos de força maior conhecidos. Com a queda do Muro de Berlim foi necessário conciliar as duas leis e em 1995, após prolongada controvérsia, chegou-se ao modelo actual, que assenta em duas ideias: 1) a IVG é legal dentro de determinados prazos para os motivos de força maior clássicos; 2) embora para as restantes situações a IVG seja ilegal, durante o primeiro trimestre a mulher não será acusada se se decidir pela IVG, depois de se submeter a uma sessão de aconselhamento prévio em que se procurará dissuadi-la de interromper a gravidez.

Se o "Sim" ganhar, não se poderá formalmente reproduzir o modelo alemão porque a IVG a pedido (até às 10 semanas) deixa de ser penalizada na nossa lei. Mas o modelo alemão, apesar do detalhe - que não tem aceitação pacífica - de manter a proibição e apesar da obrigatoriedade de um aconselhamento que não é neutro, indo antes no sentido de desencorajar a IVG - o que também não é nada pacífico -, talvez não seja na prática muito distinto do modelo francês. Sem querer caricaturar, digamos que o modelo alemão é um modelo francês aplicado por um médico (ou um "assistente social") particularmente diligente e com militância; ele tudo tentará para dissuadir a mulher, mas no fim é ela a tomar a decisão.

O que me parece mais interessante -e dramático - no modelo alemão é o número absoluto de abortos por ano, que de 1999 a 2004 flutuou entre cerca de 128 000 e 135 000. São os números de um país desenvolvido, com todos os parâmetros económicos, sociais e educacionais lá no alto. Números que filtram um sistema montado para desencorajar o aborto, depois de terem furado a contracepção e os programas de educação sexual. Números - enfim, não quero puxar muito pelo estereótipo, mas trabalho com alemães e sei do que falo - de um país em que há um enorme respeito pela lei, pelas regras, pela autoridade. O que quer isto dizer?

Para uns estamos perante um retrocesso civilizacional (mas a fim de evitar o gato por lebre, sobre números pré e pós mudança de lei recomendo vivamente este post de Palmira F. da Silva) Para outros os números reflectem muito simplesmente a inevitabilidade do aborto. O "Não", com a sua cegueira negacionista e o seu escândalo paralisante prefere manter a política da avestruz. Welcome to reality... O "Sim" preocupa-se, reconhece o aborto e tenta minorar o problema a partir de um confronto com a realidade. Como? Assegurando que quem se decide por uma IVG o possa fazer de uma forma informada e segura . Os números mostram que quem (a maioria?) opta por uma IVG tem geralmente opiniões muito fortes sobre o assunto, não as "instabilidades momentâneas" de que fala o professor Marcelo. É essa a lição do modelo alemão. Ninguém sugere que cruzemos os braços ou que se branqueie o problema, esse é outro mal-entendido. Mas a solução não é a criminalização pífia, antes o combate às claras a montante (educação sexual, contracepção) e a jusante (apoio a mães solteiras, organizações que acolham crianças para adopção, outras formas de assistência social). O que o "Sim" defende é a existência de um instante que não pertence a mais ninguém senão à mulher: o instante da decisão. Se, depois de vencidas todas as resistências, a decisão final for a IVG, a mulher decidiu, está decidido. Repito: o importante é assegurar que se trata de uma decisão informada e segura. Não aceitar isto é continuar a querer fazer da realidade uma utopia e esta distorção geralmente resulta em distopia.

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Como um Não de 1998 se pode transformar num Sim em 2007

O Pedro Lomba, jurista e comentador político (assumidamente de direita), explicou sábado, na sua coluna do DN, porque inverteu o sentido de voto entre os dois referendos. Em 1998 esteve pelo Não, agora vai pôr a cruzinha no Sim. Apesar das muitas dúvidas e de lhe faltarem "argumentos nos quais confie em absoluto", vai votar Sim. Um Sim "relativista e compromissório", mas Sim.
Da sua declaração de voto, destaco esta passagem: «Voto "sim" por um motivo legível: numa controvérsia tão difícil e irresolúvel como a do aborto, o "sim" alarga as nossas possibilidades de resposta aos problemas que o aborto coloca, o "não" fecha essas possibilidades.»
Agora que a campanha já está em marcha, parece-me que devia ser explorada esta distinção clara entre os dois movimentos (o que abre o leque de respostas ao problema e o que ostensivamente o fecha). Talvez seja esse um dos caminhos para ganhar, a 11 de Fevereiro, algumas das pessoas que se abstiveram ou votaram Não em 1998.

O aborto na Europa




Sair do guião

Vale a pela ouvir o debate em que participei na TSF e que vai hoje para ao ar às 20h00. Não pela minha pessoa, obviamente. Mas pelo meu oponente, o inominável César das Neves. O senhor diz alto o que os outros só sussurram quando estão encerrados numa sala da agência de comunicação: somos contra a lei em vigor (ele insistiu em não falar apenas em seu nome). Depois de ter o filho a mulher violada pode sempre dá-lo para adopção. Foi um debate, para dizer o mínimo, violento. Mas útil.

Nova sondagem Marktest para DN e TSF

66 % defendem aborto no SNS
77 % contra as mulheres em tribunal
63% por um novo código

Falta de decência (II)

Ontem à noite envolvi-me numa discussão no metro com um defensor do NÃO. Argumento dele: "eu não quero que os meus impostos sejam direccionados para pagar os abortos dessas mulheres" (sic). Pergunta minha: "já agora, também não queres que o dinheiro dos teus impostos vá pagar o internamento de doentes terminais de cancro (especialmente dos que fumam), dos acidentes de viação, as escolas dos filhos que não tens?"

Desumano, egoísta, patético e, além disso, perigoso e pouco cristão. Como podem ser eles mesmos defensores da vida, se depois utilizam estes argumentos? O pior é que há muitos...

Fátima, futebol e fado

A prestação do Fátima, futebol e fado NÃO nos Prós&Contras passou pelo agitar do espantalho de que a despenalização da IVG provoca um aumento exponencial do número de gravidezes interrompidas, já que conceder livre arbítrio às mulheres implica que estas abortarão pelas mais fúteis razões. A não ser que todos tenham lido este artigo da Onion e tomado uma sátira pela realidade, este espantalho não abona muito da opinião sobre a mulher dos pró-penalização, que concordam - aparentemente - com o aborto por opção médica mas fantasiam sobre a calamidade moral que será «conceder» à mulher o direito de decisão sobre uma IVG!

Na realidade, os dados disponibilizados por uma série de organismos, incluindo a ONU, indicam que a criminalização do aborto não é impedimento para que uma mulher interrompa uma gravidez que considere não ter condições para levar a termo. A única diferença reside na forma como o faz: legalmente, com dignidade e em segurança nos países onde tal é permitido; em condições muitas vezes desumanas e sempre atentórias da dignidade, saúde e vida da mulher, nos países onde a moral de alguns é imposta via Direito a todos.


De qualquer forma, e porque o exercício é didáctico, resolvi investigar as estatísticas disponíveis a nível mundial sobre a evolução do número de IVGs nos países em que este foi legalizado. O gráfico com que se inicia o post é ilustrativo do que encontrei! Não se vê qualquer tendência para uma subida nos países escandinavos e na República Checa há uma diminuição drástica para cerca de um quarto em relação ao ínicio da década de 90 e para um quinto se nos reportarmos à década de 80 - o que reflecte uma melhor educação sexual e um mais fácil acesso a contraceptivos.

Mas o caso de Itália é aquele que nos deveria fazer reflectir já que é um bom modelo do que acontecerá em Portugal se o SIM, como espero, vencer o referendo . A IVG até às 12 semanas (na prática) por opção da mulher foi despenalizada em Itália em meados de 1978. Desde 1980 que o Centro Nazionale di Epidemiologia, Sorveglianza e Promozione della Salute recolhe e analisa os dados, nomeadamente os referentes às condições socio-económicas da mulher, tempo a que se procede à interrupção, etc..

A análise destes dados (ficheiro em pdf) permite concluir que, depois de um período inicial em que houve um aumento do número de IVGs realizadas - essencialmente substituição de aborto clandestino por IVGs realizadas legalmente -, se assistiu a uma diminuição progressiva no número de intervenções, que desceram para quase metade em 20 anos: de 234 000 em 1982 para 131 000 em 2002.

É ainda indicado neste estudo que cerca de 70% das mulheres que recorreram a uma IVG em Itália no período analisado o fizeram por falha do método contraceptivo, na maior parte dos casos um dos métodos «naturais/morais» recomendados pela Igreja Católica, nomeadamente o coitus interruptus. Mas poucas mulheres recorreram mais do que uma vez a uma IVG, muito menos do que as estimadas com base num modelo matemático que assume que não alteraram as práticas contraceptivas. O que indica que o contacto com o sistema de saúde e concomitante esclarecimento mais mundano sobre métodos contraceptivos é um factor importante na diminuição do número de IVGs em Itália.

A aparente estabilização evidenciada no gráfico a partir de 1996 pode ser explicada pelo facto de que nos últimos anos se verificou um aumento muito grande do número de IVGs realizadas por mulheres de outras nacionalidades, que em 1998 corresponderam a 10% do total. Analisando apenas o número de IVGs realizadas por italianas confirma-se a tendência de descida encontrada nos anos anteriores.

Esta redução do número de IVGs após despenalização pode assim ser explicada por uma utilização de métodos contraceptivos mais eficiente, em que o acesso do sistema de saúde à mulher que aborta desempenhou um papel não despiciendo.

Mas principalmente a despenalização permite que as mulheres possam realizar uma IVG em condições de segurança, sem riscos para a saúde ou mesmo para a vida, e sem o trauma psicológico de terem de recorrer a um sub-mundo marginal com risco de humilhação na praça pública e devassa da sua vida íntima!

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