Sexta-feira, Janeiro 19

Sexta-feira, Janeiro 19

Abusos de autoridade

Creio que sou o único elemento deste blogue que tem formação nas chamadas Ciências da Vida (sou biólogo). Excluindo também o maradona, que tem formação na ciência dos calhaus, todos os restantes elementos deste grupo são das Humanidades e das Ciências Sociais. Se friso este ponto é apenas para deixar claro que NÃO trago a "mais-valia" do argumento científico pró-aborto, porque não existe um argumento científico pró-aborto e, de um modo geral, a instrumentalização do conhecimento científico para causas políticas ou outras tem resultados trágicos.

A primeira contribuição válida que a ciência trouxe para este debate, admitindo que definir quando nasce um ser humano é relevante, surgiu no século XVIII, com o abandono das teorias preformistas que defendiam existir no óvulo (os ovistas) ou no espermatozóide (os animaculistas) uma versão miniaturizada do indivíduo. O desenvolvimento embrionário era visto literalmente como um simples blow up. Sabe-se hoje que o desenvolvimento não é nada disso, mas antes uma sucessão de etapas com alterações morfológicas dramáticas, à base de processos de diferenciação, expansão, morte e migração celulares, todos contribuindo para uma progressiva aquisição de competências.

A segunda e última contribuição contribuição da ciência para este debate ocorreu no século XX e foi a descoberta do código genético. Sabemos hoje que a célula resultante da fecundação tem exactamente o mesmo material genético presente na vasta maioria das células do adulto. De um ponto de vista molecular, a gestação mais não é do que a activação de genes segundo coordenadas espacio-temporais precisas e as instruções para a execução de tal programa estão já contidas na primeira célula.

Todas as outras ditas contribuições da ciência (da neurobiologia, da cardiologia, das diferentes técnicas de imaging, etc.) são sobretudo interpretações empoladas de factos científicos e não encerram qualquer mudança de paradigma. Não são essenciais. Ora isto cria um problema irresolúvel, pois os dois contributos que sobram apenas balizam o espectro da interpretação e no meio vale tudo.

Para uns, o preformismo ainda é uma realidade, não no sentido estrito, obviamente, mas como uma metáfora. E para estas pessoas, de forma consciente ou não, o código genético parece ser a essência do indivíduo. Mesmo quando informados da natureza do processo de desenvolvimento, sentem que a união dos gâmetas é um instante fundador que cria o ser humano ou essa potencialidade, distinção que lhes parece irrelevante, pois seguindo a natureza o seu curso normal daí nascerá um indivíduo. Para outros, porém, esse instante fundador não é determinante e o indivíduo faz-se durante o desenvolvimento, em contínuo ou uma vez transposta uma determinada etapa (aquando da implantação, do surgimento de batimento cardíaco, da detecção de actividade cerebral, da aquisição de uma forma humana ou da autonomia para sobreviver fora do útero, etc.). A ciência não dá razão nem a uns nem a outros, talvez apenas aos indecisos, e João Miranda é um caso à parte pois tem ideias muito próprias sobre o assunto, suficientes para terraplenar séculos de discussões com um parágrafo assertivo que forçará os membros deste blogue a excomungar um dos seus elementos, aqui apanhado a escrever sobre o "tema tabu" para os defensores do "Sim".

Discussões infindáveis. Podemos começar por rebater a importância da fecundação lembrando que se o indivíduo se faz nesse instante, então a sua alma (o seu genoma) não é indivisível (não é suficiente para definir um indivíduo) pois em estádios de desenvolvimento ulteriores há células totipotentes, cada uma capaz de em determinadas circnustâncias gerar um indivíduo inteiro (é assim que nascem os gémeos univitelinos). Mas por muito estimulantes que estas conversas sejam, percebe-se também como são bizantinas. Dificilmente se chega a uma posição de consenso. Há um choque de princípios que a ciência não consegue amortecer.

O positivismo ainda tem os seus méritos. A ciência pode arrumar debates e quando assim é deve fazê-lo. A controvérsia alimentada por criacionistas a propósito da Teoria da Evolução, por exemplo, é absurda e facilmente se encerra no plano dos argumentos com dados da ciência. Mas no caso da interrupção voluntária de gravidez não existe essa possibilidade e não o escrevo para ilibar os cientistas de responsabilidades futuras, como se estivessem ainda a acusar o demorado arroubo de consciência pós-Projecto Manhattan .

Pena é que nem todos os médicos e cientistas concordem com esta posição, que me parece incontroversa. A um médico não se lhe pode negar o direito a expressar uma opinião sobre o aborto; o que um médico não pode é fazer passar como opinião da classe ou consenso científico aquilo que é a sua opinião ou a sua pessoalíssima/desactualizada interpretação da literatura da especialidade. E é lamentável que o faça em órgãos de comunicação para o grande público, que compreensivelmente tem perante o título de médico um comportamento reverencial. Exemplos? Apresento dois, que só não são mais actuais porque não ando a ler toda a imprensa lusa (escrevo de Nova Iorque e também gosto de cinema). José Diogo Ferreira Martins, cardiologista pediátrico, escreveu no Público de 8 de Dezembro de 2006 que "actualmente, passados mais de 20 anos, já não pode ser dito que o feto não é vida, pois a ciência mostrou-o de um modo claro e comovente". Creio que ninguém defende que o feto não seja "vida", mas percebe-se a ideia do texto. De que comunidade científica, de que ciência e de que consenso fala Ferreira Martins? O que de tão extraordinário aconteceu nos últimos 20 anos? Também não sei se o Dr. Gentil Martins, activo defensor do "Não", teve entretanto tempo de rever a sua pública posição quanto à associação entre o aborto e o cancro da mama, mas por precaução aqui fica a mais recente literatura sobre o tema. E por fim, o respeitado economista e professor César das Neves tem revelado alguma originalidade a olhar para os dados sociológicos sobre as consequências da despenalização do aborto, mas a César o que é de César e pelo seu currículo Neves merece vários posts exclusivos. Enfim, não vale a pena inventar a roda todos os dias e a solução para estes abusos é conhecida de todos: da próxima vez que ler um especialista a opinar sobre o aborto, o melhor é pedir uma segunda opinião.

Mais dois

Mais dois marinheiros embarcaram: João Pinto e Castro, do Blogo Existo, e Miguel Abrantes, da Câmara Corporativa.

Serviço público

O programa "A fé dos homens", na RTP 2, iniciou-se com uma propaganda descarada ao "Não". Bem sei que se trata de um espaço da responsabilidade da Conferência Episcopal Portuguesa. Mas não pude deixar de pensar que enquanto a CNE anda tão atarefada a compor uma grelha de tempos de antena e a multar jornais e partidos, o "Não", impavidamente, consegue encontrar as zonas cinzentas da emissão pública para difundir aquilo que quer e pode. Sem grelhas nem multas.
Carlos Abreu Amorim (CAA)

Correio da manha

Capa do "Correio da Manhã", 14 de Janeiro: "Oito em cada mil mulheres já abortou"
Além do pormenor do erro de concordância, vale a pena ver o exercício feito pelo jornal. Fizeram as contas assim: 18 mil abortos (segundo a APF), mais 904 legais em 2005, a dividir por 2,25 milhões de mulheres ente os 15 e 44 anos no País, dá o número mágico: oito. Até me sinto mal em ter de explicar a este jornal (que assumiu fazer campanha pelo "Não") algumas regras muito básicas da matemática e da deontologia. Abortam 18 mil mulheres por ano. Não abortaram 18 mil mulheres em Portugal. A não ser que sejam as mesmas 18 mil mulheres a abortar todos os anos, o número será muitíssimo superior. E é. O próprio "Correio da Manhã" refere na notícia o que se esqueceu no título: cerca de 350 mil mulheres portuguesas em idade fértil já terão abortado. Dá quanto? 155 mulheres em cada mil, e não oito. Por acaso o número exacto do estudo da APF é 143, porque o número total de mulheres férteis é de 2.446.386. 143 não soava tão bem como oito para quem queira provar que o aborto clandestino é uma questão marginal em Portugal, pois não?

Nesta campanha vale tudo. Até de quem se diga jornalista.

(Publicado no Arrastão)

Fala quem sabe

Quando ouvi a notícia não liguei. Julguei que se tratava de mais um fanáticozito a rezar alarvidades ao abrigo da impunidade que o isolamento da interioridade também comporta.
Depois li o DN. Afinal, o pároco de Castelo de Vide parece saber o que diz - Tarcísio Alves é doutorado em Direito Canónico pela Universidade Católica de Salamanca. A sua ameaça de excomunhão automática e de proibição de funerais religiosos deve ser levada a sério. Aparentemente, esse anátema dirigido a quem apoiar o "Sim" consta expressamente das normas que regem a igreja e os crentes. E deverá ser aplicado, em pia coerência.
Cordialmente, cumpre-me dar os parabéns à campanha do "Não" por mais esta manifestação de moderação e de tolerância no debate.
Carlos Abreu Amorim (CAA)

Aborto é de esquerda, pá

Os meus amigos do 31 da Armada não percebem a natureza deste blog porque também não percebem a natureza do debate sobre a IVG. Ironizam com a abrangência, o facto de se encontrarem aqui pessoas que, politicamente, vão desde o PSD ao BE. Julgam que se trata de um "rodízio". Enganam-se. É justamente esta abrangência política e ideológica que demonstra que a questão da IVG não se reduz a uma polémica entre esquerda e direita. Luciano e Rodrigo, não vale a pena irem por ai. Abraço amigo para os dois.

Vasco Rato

O grau zero da coisa

As pessoas do Não têm os seus valores e têm a liberdade para viverem de acordo com eles. Se a lei mudar continuarão a poder fazê-lo. Mas uma percentagem muitíssimo alta de portugueses e portuguesas não tem, neste momento, a mesma liberdade. Na situação actual, o estado português protege os valores específicos dos defensores do Não e não garante a liberdade de escolha aos e às restantes portugueses e portuguesas. O Sim é um voto pela liberdade de escolha de toda a gente - incluindo os defensores do Não. O voto no Não é, pelo contrário, um voto que pretende tomar decisões pelas outras pessoas, impondo uma visão específica (e não apenas defendendo a sua, já que essa continuará salvaguardada). O Sim acrescenta. O Não continua a subtrair.

(Publicado em Os Tempos que Correm)

Razões do meu SIM (1)

- Em qualquer movimento abrangente e ideologicamente transversal é natural que exista muito ruído lateral em que cada um de nós dificilmente se conseguirá rever (ainda que por razões diferentes) - mas o que importa é estarmos de acordo na questão essencial;
- O próximo referendo apenas decidirá se existe ou não a possibilidade legal de IVG até às 10 semanas ou se, pelo contrário, as mulheres que tomarem a iniciativa de interromperem a gravidez sem essa nova cobertura legal deverão ser perseguidas criminalmente - as demais questões que agora são pressurosamente suscitadas nada mais visam do que " desconversar" para manter tudo como está;
- E, como está, está muito mal;

Carlos Abreu Amorim (CAA)

Porque voto Sim (2ª edição)

«Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?».

É esta a pergunta que vai a referendo. Não é outra. Por isso, vale a pena discutir as balizas deste referendo. O que está em debate e o que não está em debate.

São feitas quatro perguntas nesta pergunta:
1. Se concorda com a despenalização do aborto;
2. Se ele deve ser feito por opção da mulher;
3. Se a despenalização deve ser até às 10 semanas
4. Se deve acontecer em estabelecimento de saúde legalmente autorizado.

As respostas a cada uma destas questões podem ir em sentidos diferentes. No fim, pesando cada uma delas, cada um decidirá o seu voto.

O que não está na pergunta e que, na minha opinião, não determina o voto:
5. Quando começa a vida humana?
6. Qual a sua posição sobre o aborto?
7. A mulher é dona do seu corpo?
8. Concorda com este referendo?

Neste texto longo , publicado aqui, que eu me exigi a mim próprio, vou a cada um destes oito pontos. Podem lê-lo aqui. Com tempo.

Está no ar

Abre hoje as portas o blogue SIM NO REFERENDO. Ele é um bom retrato da variedade de motivações para, no próximo dia 11 de Fevereiro, responder favoravelmente a esta pergunta: «Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?» Por diferentes razões, estas 14 pessoas juntaram-se aqui para apelar ao voto "sim" no próximo referendo.

São estes os blogueiros pelo "sim": Carlos Abreu Amorim, Daniel Oliveira, Fernanda Câncio, Helena Matos, Ivan Nunes, Joana Amaral Dias, Luís M. Jorge, maradona, Miguel Vale de Almeida, Pedro Adão e Silva, Ricardo Araújo Pereira, Rui Tavares, Vasco M. Barreto e Vasco Rato. Outros virão.

Este blogue acaba no dia 12 de Fevereiro. Dando, espera-se, boas notícias.