Quinta-feira, Janeiro 25

Quinta-feira, Janeiro 25

Um avanço civilizacional

Confesso a minha falta de paciência para ler o Blogue do Não. Mas, ao tropeçar num post de um "ateu – nalgumas matérias até anti-clerical - e profundamente liberal", esperava uma argumentação diferente. E não é que tinha? Ei-la: este "manifesto ateu e liberal pela defesa da vida" aceita a interrupção da gravidez no caso da " morte intra-uterina" do feto. E aceitará que essa interrupção possa ser realizada em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?

Pelo sim, pelo não



O movimento pelo Não afunda-se cada vez mais na contradição das suas afirmações; depois de Marques Mendes, Marcelo e César das Neves, é Maria do Rosário Carneiro (deputada católica do PS, dita independente) que defende a despenalização, mas quer votar Não.

Não sei se neste atoleiro de duas causas inconciliáveis, os do Não estão involuntariamente a fazer campanha pelo Sim, ou se, pelo contrário, isso não é uma estratégia de captação dos votantes indecisos apelando àquilo que afinal é consensual: a despenalização das mulheres.

A contradição está cada vez mais explícita: "É muito curto que a simples vontade de uma pessoa possa depender da vontade de outra", diz M. Rosário Carneiro, querendo com isto significar que há uma vida que decide sobre a outra. E para os do Não, decide o embrião. Ora o mesmo argumento invertido é o que defendemos: para nós, decide a mulher.

E como realmente o embrião, como toda a gente sabe, não decide nada, o que eles querem é que a lei decida da vida de cada mulher. Em nome do embrião. E vêm novamente prometer aquilo que nunca antes os católicos do PS e do PSD fizeram, nos 9 anos desde o anterior referendo: propor "um anteprojecto de lei no sentido de não criminalizar mulheres que tenham feito abortos clandestinos". Dá vontade de rir.
(Recorte do Público de 24-01-2007)



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[...] Eis-nos em pleno surrealismo: uns recusam a aplicação da lei por a considerarem injusta; outros exibem o seu tornear para lhe reclamar a sobrevivência, aos gritos de "não são presas, não são presas!" Como se a ausência de mãos nas grades libertasse alguém da obscena devassa infligida por todo o processo…

[...]Em termos práticos, a que tem conduzido a lei vigente, provada que está a ausência de qualquer efeito dissuasor? À liberalização do aborto clandestino, com os resultados que todos conhecemos, ao nível da saúde física e psicológica das mulheres; quem frequentou ou frequenta os Serviços de Urgência conhece-os bem, por mais que diminuam as situações de vão de escada. O que somos chamados a decidir é se pessoas que tomaram uma decisão de foro íntimo, na esmagadora maioria dos casos dilacerante, têm ou não o direito de enfrentar um período difícil com ajuda profissional e sem a palavra crime e suas consequências à espreita . A escolha com que nos deparamos é esta e só esta.
Júlio Machado Vaz

Desta vez, sem reserva mental

É muito espertalhão o video do Marcelo, sobretudo aquele em que ele diz que a lei actual já não é aplicada . É esperto porque estimula a desconfiança intrínseca das pessoas nas instituições, no Estado, nos governantes, nos políticos: «nós sabemos para que servem as leis, nunca as aplicam, os governos mudam mas são todos iguais – não é?» Mas o principal trunfo nem é esse: o maior trunfo é a confusão. Ao fim de um video – quanto mais três – já ninguém sabe de que está o Professor a falar – despenalização, liberalização, eu sei lá o que mais.
Como está mais que estudado em toda a parte do mundo, a melhor maneira de desmobilizar o eleitorado em referendos é obscurecer a pergunta.
Longe da simplicidade do Sim e do Não, depois de uma boa campanha eleitoral e bastante barulho, qualquer pergunta fica tudo menos clara. Todos os argumentos – mesmo os argumentos contra Marcelo – jogam a favor dele, se a pergunta parecer técnica, difícil, pouco clara, duvidosa nos seus termos.
Acho que a maioria das pessoas realmente pensa que as mulheres não devem ser julgadas por aborto, e que devem poder fazer os abortos que tiverem que ser feitos em condições de segurança nos hospitais. Mas basta que tudo pareça cheio de esquemas,
uma discussão de políticos e de juristas, cheios de truques e de maroscas e de agendas escondidas de partidos, e o cidadão corre rapidamente para os braços do cinismo e da desistência.
Já se viu muitas vezes, em toda a parte do mundo. A esperteza do Marcelo foi convidar à confusão. São precisas pessoas com semelhante visibilidade - e, já agora, da mesma área política - para mostrar que a escolha é clara.

Não vamos votar uma questão de consciência

A opção entre abortar ou não abortar é uma questão de consciência.

A opção entre votar contra ou a favor da despenalização não é uma questão de consciência, é uma questão política.

E essa questão política consiste em saber se ao Estado deverá ser concedido o direito de impor a moral preferida por algumas pessoas (mesmo que muitas) a outro grupo de pessoas (que, por acaso, também são muitas).

Sociedade Civil, RTP 2

Fui convidado para o Sociedade Civil, programa da RTP 2 que na próxima semana é dedicado todos os dias ao referendo. O convite foi muito gentil e vou com muito gosto. No entanto, estive agora a ler a lista de temas, um por dia: "Descriminalização da IVG"; "Capacidade de Decisão para Interromper a Gravidez"; "Quando Começa o Ser Humano"; "A Deontologia Médica e a IVG"; e "Facturas da Gravidez: Indesejada ou Interrompida".

Há aqui um pequeno problema. Vários, até: o primeiro é o "Desciminalização", que espero tenha sido um lapso. O segundo é que muitos temas soam a agenda do Não (incluindo as "Facturas", que tem a ver com os supostos custos da despenalização para o SNS) e não parecem ter, como contrapartida, temas do Sim: cadê algo como "A Liberdade de Escolha"? Cadê algo como "O Direito das Pessoas ao Seu Corpo"? Cadê "IVG e igualdade de género"? Não estou a dizer que o programa "está ao serviço" do não. Estou a dizer que o Não conseguiu marcar as "regras da linguagem" no debate público.

Em rigor, passava bem sem nenhum destes temas, do Não ou do Sim, focando antes na pergunta do referendo. Só. A tal que tem a despenalização com que Marcelo® tanto concorda.

Confiar nas pessoas

1. O aborto não é uma questão religiosa. Há quem queira transformá-lo assim, por conveniência de convicções ou má fé de argumentário. Mas, como católico, sinto que alguns sectores da Igreja me querem encurralar num espaço ideológico uniformizado e acrítico, sem perceber que esta Igreja deve antes confiar nos seus fiéis e que deve levar a sério a adultez moral de todas e todos.

2. Sobre este debate já tive oportunidade de escrever um texto [para o jornal "Público", republicado na Cibertúlia], com outros amigos, a partir da nossa condição de católicos, mas procurando questionar não apenas os que estão "do lado de dentro". Sem querer copiar esse texto, para esta minha primeira participação no Sim no Referendo, retomo algumas das suas ideias e acrescento outras reflexões, que são aquelas que continuam a marcar a minha participação neste debate e referendo.

3. O facto de defender a despenalização do aborto (é isso que está em causa) não significa que seja contra a vida. A interrupção de uma gravidez não é desejável por ninguém e o recurso ao aborto não pode ser encarado como algo simplesmente leviano e fácil. Cada caso é um caso, mas por todos os casos perpassa um conflito interior enorme. Pensar o contrário é não confiar nas pessoas, é achar que o aborto vai explodir como se banalizasse um novo método contraceptivo.

4. A liberalização do aborto já existe: chama-se vão de escada, uma economia clandestina (traduzida em centenas de euros) que desgraça mais do que ajuda, sem condições clínicas e higiénicas. O que se pretende é acabar com esta liberalização forçada, tornar clinicamente seguro um acto que não deve ser pago com a cadeia, como prevê a actual lei. Mais: em lado nenhum, a despenalização contribuiu (ou contribuirá) para o aumento exponencial e deplorável do número de abortos, como afirmam alguns sectores do "não".

5. Neste debate, há quem entenda que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não pode servir de apoio a actos clínicos, como o aborto, porque o dinheiro de todos não deve servir para pactuar com comportamentos de risco (como se os obesos, os fumadores, os toxicodependentes, não pudessem mais ser tratados num sistema "clinicamente puro"). O SNS será sempre mais barato que a actual economia clandestina paralela ou do que a ida-apenas-para-quem-pode a Badajoz e Madrid. O SNS deve servir para os que não têm possibilidades de atravessar a fronteira, para estes não mais usarem um qualquer vão de escada.

6. Na "defesa da vida" do "não" há sempre um carácter absoluto que não encontra paralelo em mais nenhum campo da vida. Muitos que agora dizem defender esta vida, desdenham dela em situações concretas de todos os dias: a pobreza extrema é tolerada como "inevitável", a pena de morte "eventualmente aceitável", o racismo e a xenofobia é discurso aceite e propagandeado. Mesmo os católicos são pouco afirmativos nos combates por outras políticas da vida como as do emprego, do ambiente, da habitação ou da segurança social.

7. A defesa da vida, neste caso do aborto, deve sempre ser formulada no plural. Estão em questão as vidas de, pelo menos, três pessoas e não apenas a de uma. Por isso, quando se procura estabelecer uma hierarquia de valores e de princípios, ela nem sempre é fácil ou mesmo clara e não será, seguramente, única e universal. Nem o argumento de que a vida do feto é a mais vulnerável e indefesa das que se jogam na possibilidade de uma interrupção voluntária da gravidez pode ser invocado de forma categórica e sem quaisquer dúvidas.

8. A invocação do direito da mulher a decidir sobre o seu corpo ("a barriga é minha") é um argumento que, isoladamente, corre o risco de reproduzir de uma outra forma a tradicional atitude de desresponsabilização de grande parte dos homens perante as dificuldades com que se confrontam as mulheres na maternidade e no cuidado de uma nova vida.

9. Devemos cuidar de defender uma outra confiança e responsabilização dos adultos, na sexualidade, no prazer, no corpo. Manter um discurso, como faz por exemplo o Episcopado ou a Igreja institucional, de ataque à contracepção artificial fecha todas as alternativas, salvo a da castidade sacrificial. É um discurso que não contribui, de modo algum, para a defesa de uma intervenção prioritariamente preventiva, em que ao Estado fosse exigível um sistemático e eficaz serviço de aconselhamento e assistência no domínio do planeamento familiar e da vida sexual.

10. O recurso ao aborto é sempre, em última análise, motivo de um grave dilema moral. E é nessas circunstâncias de extrema dificuldade que entendo ter mais sentido a confiança na capacidade de discernimento de todos os seres humanos, em consciência, sobre os caminhos da vida em abundância (que, para os crentes, é querida por Deus) para todos e para todas.

A saturação e o equívoco

Ao fim de uma tarde à cata dos artrópodes autóctones de uma encosta da Serra da Arrábida, aprende-se que de início é fácil descobrir espécies novas e que gradualmente a taxa de acumulação de novidades diminui. Esta trivialidade tolera-se melhor na forma de gráfico, pois fica claro quando começou a ser difícil encontrar novidades e qual o esforço necessário (em tempo de observação ou aumento da área coberta) para descobrir uma espécie adicional. A dada altura, torna-se inglório continuar na encosta da serra, mais vale dar por encerrados os trabalhos e descer até ao Portinho da Arrábida para actividades balneares ou outras. Não temos a garantia de ter identificado todas as espécies possíveis, ficamos é com a certeza estatística de andarmos lá perto. E a mais não somos obrigados.

Como aqui. Após quase uma semana de discussão, reflexão, escritos e leituras, sinto que não aprendi nada que não soubesse já - ressalvando a descoberta da palavra "argumentário" - e estou com imensa vontade de ir ao cinema. A ter mudado alguma coisa, só a força das minhas convicções. Houve certamente lugares (a azul no gráfico) melhores do que outros (a verde) para discutirmos, mas em ambos a polémica estagnou depressa. Eu sei que um blogue de campanha não se faz para aprofundar as nossas ideias. Sei que essencialmente devemos apresentar a mesma ideia muitas vezes e se possível de maneira diferente. O meu problema é outro.

Não tenho o currículo de Pacheco Pereira para dizer sem cair no ridículo que não estamos a discutir a questão essencial; sinto, porém, que não estamos a discutir a questão essencial. Os argumentos do "Não", os contra-argumentos do "Sim" e vice-versa, as picardias patetas, interessantes, amistosas, clubistas, difíceis e as simples falhas de comunicação, enfim, este circo todo é de quem continua a chapinhar na água e por algum motivo não arrisca o mergulho. Mesmo do meu lado, pese embora os textos bem pensados e o meu, se leio mais uma apologia por pontos - Vital Moreira, 12 razões, líder incontestado do pelotão - sei que a integridade física do meu iBook G4 estará em perigo.

Já não vamos lá pela acumulação de argumentos. O problema é complexo, há uma miríade de razões, mas ou o destilamos num corolário simples, num critério de decisão, ou de nada nos serve a lógica e a retórica. A mente não funciona como um contabilista que calcula o saldo dos prós e dos contras. A mente aglutina tudo numa "questão essencial" e é a essa questão que somos convidados a responder no dia 11 de Fevereiro.

A contribuição que dei para a série "o meu sim" foi por isso na forma peregrina e tonta de resposta essencial e idêntica a outras, no conteúdo ou no conteúdo e na forma. É tudo o que tenho a dizer sobre esta matéria. Não sou jurista, não tenho experiência nem conhecimentos para pensar a lei em profundidade (mas sei reconhecer os melhores), não sou médico e se fosse não teria a falta de vergonha para abusar da minha autoridade ( mas sei reconhecer os piores), discuto questões que obviamente me transcendem - Quando começa a "vida humana"? Qual o valor da "vida humana"? - por puro e leviano gozo intelectual, aproveitando o momento e com a única intenção de as esvaziar de importância.

O risco de que estejamos a perpetuar a hipocrisia ou a prolongá-la por tempo indefinido é, creio, a grande força motriz de quem vota "sim". Com esta lei e o silêncio sem cumplicidade com que tratamos o problema, conseguiu-se uma disseminação pandémica da hipocrisia, que chegou às leis, ao Estado, às ordens profissionais, às famílias e aos indivíduos. É claro que a minha posição só pode procurar expurgar a hipocrisia daquilo que melhor conheço, isto é, de dentro da minha cabeça. Enfim, isto já foi dito e reciclado de mil e uma formas; como tento respeitar as regras deste jogo, explorarei outro ângulo e outro tom.

A preocupação principal que tive foi a de fazer com que a conclusão ficasse imune aos chavões que incomodam uns (o feto é um ser humano como nós) e outros (liberdade incondicional para a mulher decidir), não para procurar o consenso fácil ou por simples capricho, mas para chegar a um argumento sólido. Tudo o resto que tem vindo à baila, a nidificação das cegonhas (?) e demais variações zoológicas sobre o tema, a suposta falácia do argumento da infalibilidade dos métodos contraceptivos, a falsa dicotomia despenalização-liberalização, a sacanice dos argumentos económicos , a preocupante obsessão com o fundamento para a existência de um prazo para se poder abortar legalmente, a forma como entendemos e vivemos a sexualidade e a reflexão sensata de que devemos assegurar que a mulher possa decidir com ponderação*, tudo isto é absolutamente irrelevante (num primeiro tempo*) para tomar uma decisão sobre a orientação do voto.

A única saída que encontro para construir um argumento sólido é pensar o "sim" como um acto de egoísmo, um compromisso que eu tenho com a minha consciência e mais ninguém. No limite, o leitor pode pensar que me estou nas tintas para as mulheres que abortam. Não confirmo, mas desmentir só seria essencial para me melhorar a mim e não o argumento. É esse o tom que imprimo ao meu sim, insensível na sua frieza, a fazer disto um exercício calculado para convencer -pois claro -, mas que nas conclusões a que chega e por não querer intencionalmente aldrabar ninguém não me atraiçoa. Um "sim" baseado no mais puro pessimismo antropológico tão ao gosto de certa gente, mas em modo introspectivo ; um sim, em suma e para usar um derradeiro slogan, que expõe cinicamente o lado egoísta da retórica solidária . É o texto que encontrará aqui daqui a uns dias, que apenas expande os dois outros aforismos tontos e que está tão sintonizado com este post de Filipe Nunes Vicente que quase desisti de o escrever.

Continuarei a despachar serviço à tona de água como tenho feito até agora, neste destrunfanço recíproco de contradições com o lado do "Não". Tenho porém a "certeza estatística" de que não encontrarei nenhum novo argumento, excepto talvez uma idiossincrasia do Professor Arroja, que em escalada mística faz o papel de um irresponsável coleccionador de artrópodes exóticos tentado a soltar mais venenoso dos escorpiões africanos na encosta da Arrábida, só pelo gozo de corromper a ciência e a saúde de quem anda por lá a fazer pela vida.

Creio que devo terminar agora, não vá alguém deixar de votar a 11 de Fevereiro por não ter despertado a tempo de um sono profundo iniciado no dia 25 de Janeiro. Queira Deus que não seja demasiado tarde.

nem sociólogo, nem ninguém

Pressionado por dezenas de emails, fui ver o youtube do Professor Marcelo do saite, perdão, sítio, assimnao. Com o rigor na argumentação que o caracteriza, lá o ouvi a discorrer sobre a sua felicidade com o referendo e as razões do assim não. Esforcei-me, esforcei-me e estava quase a perceber o argumento. Quase. Mas a certa altura, o Professor propõe, para a mulher que queira abortar, o aconselhamento prévio por um sociólogo – "nem sociólogo, nem ninguém", para ser exacto. Aí tive um estado de alma e disse: "alto e pára o baile". Eram 16.34 horas de dia 25 de Janeiro de 2007. No meu relógio.

Saudades de Sousa Lara

«No próximo referendo vou votar 'não'. Sempre votei 'não'. Sou católico, apostólico e romano. Ainda assim, o meu voto não é por uma questão de obediência, mas por uma convicção íntima de que o aborto é a eliminação de uma vida humana. Disso não tenho qualquer dúvida, embora considere que a interrupção da gravidez não deveria ser criminalizada. Acredito na vida eterna e no julgamento final. As pessoas que praticarem o aborto serão julgadas pelo Criador. Ofereci-me para participar na campanha do referendo, mas não me convidaram. À minha conta já fiz duas micro sessões de esclarecimento.» [António Sousa Lara, Diário de Notícias 25.01.2007]


É uma pena que à campanha do "Não" tenha escapado a oportunidade de convidar António Sousa Lara, o ex-subsecretário de Estado da Cultura em tempos celebrizado por um acto de censura sobre um livro de Saramago. Sousa Lara é emblemático das posições da campanha. Afinal, trata-se de um homem que acha que abortar é eliminar uma vida humana, ao mesmo tempo que acha que abortar não deve ser criminalizado, ao mesmo tempo que diz ir votar contra a descriminalização (no mundo de Sousa Lara, votar contra a descriminalização não quererá dizer ser a favor da criminalização?), ao mesmo tempo que acha que as pessoas que abortarem devem ser julgadas pelo Criador (e depreende-se, não pelos tribunais da Maia, de Setúbal ou de Aveiro). O resultado de tudo? Vota 'não', porque é católico-apostólico-romano, mas não por uma questão de obediência.

É uma pena desperdiçar um talento destes, que resume todas as contradições de uma campanha em poucas linhas e sempre com igual convencimento.

Mas, acima de tudo, é uma pena que ele não nos explique com que cara ficaram as pessoas que assistiram às suas duas "micro sessões de esclarecimento".

Momento Gabriel Alves

"Sim" à força da convicção, "Não" à convicção pela força.

Ah, o burlesco

Caro João Vacas, talvez possa então explicar como é que o feto deve ter o «direito inalienável à vida», sem mais discussão, mas isso constituir um factor variável consoante exista ou não violação da mulher? Evidentemente, como ainda há semanas ouvi de um representante da Federação Portuguesa pela Vida num debate no Porto, não pode. E sobre a burkha ele não se pronunciou, o que é pena.

Pois se em Portugal uma mulher e/ou um casal não têm possibilidade de decidir sobre a sua própria maternidade/paternidade nem tão pouco de reflectir sobre as condições que têm ou não para criarem condignamente um filho dentro de um período legislado para tal em quase toda a Europa, o menos importante aí deve ser a concepção. Será a indiscutibilidade da «vida» independentemente da vida de cada qual, ou não? É que, mal por mal, no toca a dogmáticos tendo a prefiro os coerentes.

Cristãos novos

Eu, que ando pelo lado direito político, fico muito satisfeito em saber que, com a aproximação do referendo, muitas pessoas dizem ser favoráveis à descriminalização da IVG. Não sabia. E, mais importante, não vi, durante os anos de governo PSD/CDS, tentativas de alterar a lei.

"Jogar às mentiras"?, pois parece que sim

O Daniel Oliveira já desmontou este argumento lá mais para baixo, mas apetece-me insistir, apesar de, como já referi noutro lugar, me parecer um argumento irrelevante.
Quiçá porque o Ricardo Araújo Pereira faz parte deste blog - apesar de ainda não termos tido o prazer de o ler (olha eu a armar-me em" grupo de pressão") -, é nele, ou melhor num sketch do "Gato Fedorento" , que penso quando me vejo confrontada com alguns dos escritos de uma empenhada militante do não chamada Assunção Cristas. Há uns tempos a senhora escrevia no blog no não, em tom veemente, «É que, como todos sabemos, não há processos relativos a aborto praticado antes das 10 semanas de gravidez. Isto quer dizer que os processos que existiram existirão na mesma caso o "sim" ganhe.» . Agora, no site do incongruente Professor Marcelo Rebelo de Sousa*, afinal já não são bem todos, mas, e cito, « a generalidade dos casos que foram a julgamento por prática de aborto continuarão a ir a julgamento ainda que a proposta de lei venha a ser aprovada na sequência do referendo;». Estamos no bom caminho. Talvez - haja esperança! - antes de dia 11 de Fevereiro venha dizer «Quase nenhum caso levado a julgamento tinha mais de 10 semanas». Ah! Qual é o sketch em q penso? Ora, ora, não se está mesmo a ver? Este diálogo não vos soa familiar?
"Como é que se define sexualmente na cama?"
Sou um leão...sou um toiro...sou um lobo, vá... sou um cão, sou um cão... sou um rato"

*A crónica de Luís Costa de hoje no Público é um belo exemplo de desmontagem da argumentação incoerente de Marcelo Rebelo de Sousa

Os nins

Do lado das pessoas que vão votar não, mas que consideram que a mulher não deve ser condenada, nem sequer julgada e logo defendem a manutenção da lei actual, ainda não vi ser abordada a questão dos auxiliares à prática do aborto. Os médicos, parteiras ou simples curiosos que fazem a intervenção, devem também não ser julgados ou condenados? Claro está que esta situação não seria possível com o risco de haver uma explosão de curiosos a fazer abortos (com evidentes preços baixos, podem em risco, ainda mais, vidas de mulheres menos favorecidas economicamente).
Neste quadro, as mulheres que fizessem um aborto não teriam problemas com a lei mas os auxiliares sim.
Assim sendo, e no fundo, o que estas pessoas defendem é a promoção do aborto clandestino a uma escala sem precedentes.

Com os erros e as virtudes

Do artigo de hoje de Pacheco Pereira no Público:

«E para as mulheres, que, quase todas, ou abortaram ou pensaram alguma vez em abortar, ou usam métodos conceptivos que à luz estrita do fundamentalismo são abortivos, o aborto de que estamos a falar neste referendo não é uma questão de opinião, argumento, razão, política, dogmática, mesmo fé e religião. Também é, mas não só. É uma questão de si mesmas consigo mesmas, íntima, própria, muitas vezes dolorosa e nalguns casos dramática. Não é matéria sobre que falem, se gabem, argumentem ou esgrimam como glória ou mesmo como testemunho. (...) No seu silêncio votarão ou abster-se-ão, mas é por elas, por si, pelo seu corpo, pelos seus filhos, pelo seu destino, pela sua vergonha, pela sua dor, pela sua miséria, pelas suas dificuldades económicas, pela sua vida, pelos seus erros, pelas suas virtudes.»

E ainda há quem diga que a lei não é cumprida...

"Citando dados do Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça, o documento refere que, entre 1998 e 2004, registaram-se 223 crimes de aborto, que resultaram em 34 processos concluídos, 43 arguidos e 18 condenações. Sendo que "um crime de aborto pode abranger uma ou várias pessoas". Público, 25/01/2007

Afinal parece que é!

Acróstico (2)

Salvem-nos dos
Ingénuos
Moralistas

Acróstico (1)

Salvem-nos dos
Imbecis
Moralistas

"O regresso do zézinho"

Para todos os que acreditavam que esta seria uma campanha diferente, desenganem-se. Além desta imagem - só não a coloco aqui porque é do mais hardcore que há - que está no site da Plataforma do Não, o movimento já começou a distribuir zézinhos, pequenos bonecos que representam, nas palavras daqueles, as dez semanas. O boneco é um autêntica criança, com os dedos todos, as orelhas, olhos, cabeça proporcional ao corpo, etc. Está-se mesmo a ver onde isto vai dar.

Um post de Nuno Sá Lourenço, no Corta-Fitas . (Acrescento, por respeito ao autor, que o estou a citar sem saber qual é a sua intenção de voto neste referendo — tendo em conta o blogue em que estamos, parece-me uma ressalva importante).