Segunda-feira, Janeiro 22

Segunda-feira, Janeiro 22

O que vamos votar

O Prof. João César das Neves argumenta hoje no DN, num tom invulgarmente equilibrado, que na questão do aborto estão em confronto duas ordens de valores igualmente respeitáveis: de um lado, o direito da mulher a determinar a sua vida e o seu corpo; do outro, o direito à vida do embrião.

Logo, segundo ele, o que vamos decidir no referendo do dia 11 de Fevereiro é qual desses direitos deverá prevalecer sobre o outro.

Lamento, mas acredito que o Professor está enganado. O confronto de valores ocorrerá eventualmente - se quisermos aceitar a dicotomia proposta, o que é discutível - na consciência de cada mulher que se confronta com a opção entre abortar ou não abortar, e é exclusivamente nesse plano que deve permanecer.

O que vamos decidir com o nosso voto é outra coisa, ou seja, se é lícito que uma parte da sociedade imponha à outra a sua ideia sobre que valores devem ter a primazia nessa situação.

Por outras palavras, não vamos votar nem teorias científicas nem visões filosóficas sobre o que é ou não é a vida. Não vamos sequer, como pretende César das Neves, votar em certos valores em detrimento de outros.

Vamos tomar uma decisão política cujo âmago consiste em saber se a democracia em que vivemos pode genuinamente ser considerada liberal. Porque nós vivemos numa sociedade de cidadãos, não numa sociedade de embriões.

as contradições da lei, por costa andrade

Em 2004, falei com o penalista Costa Andrade sobre a lógica da lei existente e os valores que pretende defender. Republico aqui o artigo que então publiquei, no contexto de um dossier sobre a aplicação da lei. Apesar de minúsculo, parece-me útil para ajudar à compreensão do que está em causa no referendo.


O penalista Costa Andrade, da Universidade de Coimbra, considera que a lei do aborto tem «muitas e graves contradições».

A lógica da lei portuguesa, que seguiu o «modelo das indicações» e não o dos prazos (em que o embrião ou feto é, até certo tempo de gestação, irrelevante ou neutro) adoptado por outros países, é, diz o professor de Direito, a de «defender a vida intra-uterina à custa da liberdade da mulher». Ou seja, exigir-lhe que seja mãe contra a sua vontade.Mas, ressalva, «a lei atende também a situações de conflito em que não é exigível impor àquela mulher que tenha a criança, atendendo assim à sua liberdade».

É o caso do perigo para a sua saúde. E do crime contra a autodeterminação sexual, em que a interrupção se pode fazer até às 16 semanas: «a liberdade da mulher foi sacrificada de forma tão intolerável que até é crime». Mas também quando está grávida de um deficiente o aborto é permitido até às 24 semanas. «Aí prevalece a liberdade da mulher, se rejeita uma criança com aquelas deficiências.»

O aborto voluntário é sempre, por definição, fruto da rejeição. Trata-se então de determinar, por via de lei, quais as rejeições aceitáveis, ou legítimas, e as que o não são.O que pode implicar uma maior valoração jurídica de uma vida intra-uterina de uma semana(se destruída por vontade da mulher, sem caução legal), que de um feto de 24 semanas.

Às 24 semanas um aborto é um parto induzido, e muitos fetos com esse tempo nascem vivos – há um parecer do Conselho Nacional de Ética que atribui ao médico que fez o aborto a decisão de reanimar ou deixar morrer. Às 24 semanas não há dúvidas sobre a existência de cérebro e sensibilidade à dor.

Aceita-se o mais, não aceitando o menos? Costa Andrade concede. «É um absurdo do ponto de vista filosófico e teológico. Mas a lei não se sente legitimada para impor à mulher certas situações. É como se dissesse: eu não posso exigir-lhe isso.»


actualização: o francisco mendes da silva, do blogue do não, fez o favor de me informar de que terei esquecido algo que ele considera importante: é que, segundo notícia que ele refere, o professor costa andrade vota NÃO. eu diria que isso se nota até um pouco naquilo que ele diz e que eu cito, mas queria certificar ao francisco que não postei este artigo por considerar que o professor costa andrade vota sim, mas pela análise que faz da lei. julguei que isso seria claro para toda a gente, mas pelos vistos não (suspiro).

Argumentos fundamentais para o Sim (1)

No Logicamente, Sim, por Tiago Mendes.

Inverno, mas pouco

Telejornal. Numa manifestação contra o aborto em França («realiza-se todos os anos desde 2004», insistia o jornalista) há um apelo pelo não no referendo português. Uma manifestante sobe ao palco, convicta. Caso o sim vença por cá, diz ela, o «inverno demográfico» francês pode verificar-se também em Portugal. A interrupção voluntária da gravidez é legal há mais de trinta anos em França. No ano passado, o país atingiu os dois filhos por mulher. É o mais fecundo da Europa.

Mais sim (actualizado)

Um alargamento a que se seguirão, ainda esta semanas, mais alguns. Entra hoje o André Belo, a Marta Rebelo, o João Sedas Nunes, o Tiago Barbosa Ribeiro , João Manuel Oliveira e Luís Carmelo.

Correia de Campos

Tenho lido diversas referências na imprensa a uma petição colocada na Internet por um grupo de «cidadãos que defende o sim e que estão muito preocupados» com a participação do Ministro da Saúde na campanha para o referendo. Segundo esse grupo, as intervenções de Correia de Campos têm ajudado a campanha do não. Ora, preocupado fico eu com esta cobertura jornalística a uma evidente manobra de campanha que nada tem a ver com os movimentos pelo sim. Pior: que é absolutamente irrelevante. Nos signatários da «petição» estão trinta e dois -- 32 -- nomes, entre os quais quatro anónimos, um Sócrates, duas Alziras Santos e um Gonçalo Ameal que faz parte da «Plataforma Não Obrigada». Uma genuína flashmob, portanto.

(Publicado no Kontratempos)

Direitos e protecções










(Doug Marlette, 2002)



Mas não se esqueça dos limites morais, dr. Jorge Ferreira

«Pergunto ao ministro Correia de Campos, que é suposto tratar da saúde e não de abortos, se o mesmo Serviço Nacional de Saúde também vai passar a pagar os tratamentos necessários aos casais que pretendem ter filhos e não conseguem?»
Jorge Ferreira, blogue no Não, 22 de Janeiro de 2007

«Para que essa ajuda médica à fecundidade do casal seja moralmente legítima, ela deve limitar-se a auxiliar a união sexual dos esposos a ser fecunda. A comunicação da vida brota da união amorosa dos esposos. Gerar um filho, por maior que seja o desejo de paternidade e maternidade, é sempre uma dádiva e não a reivindicação de um direito absoluto.»
Comunicado da Conferência Episcopal Portuguesa sobre a Lei da Procriação Medicamente Assistida, 16 de Novembro de 2006

Ajudar a Mafalda a dar o passo que falta

Dois posts escritos pela Mafalda (para o Vasco M. Barreto e para mim) mostram que a adepta do "Não" precisa de ajuda para levar a sua cruzada até ao fim. A Mafalda pensa que, por a vida ser um bem jurídico e por a Constituição dizer que ela é inviolável (artigo 24.º), é inconstitucional despenalizar qualquer atentado contra a vida antes e depois do nascimento.

Por isso, Mafalda, a sua única posição coerente, repito, é lutar pela criminalização da pílula do dia seguinte. Eu até lhe dou uma ajuda técnica se o quiser fazer:

Em primeiro lugar, proponha que a tentativa passe a ser punida sempre. Para isso basta que se acrescente um novo número ao artigo 140.º, um n.º 4, que estabeleça que a tentativa é punível. Assim, apesar de a pena para o crime consumado não exceder três anos, a tentativa passará a ser punida, como acontece, por exemplo, no furto, na burla ou no dano. Na perspectiva da Mafalda, esta é a solução que se impõe, até em nome do argumento simplista de que a propriedade não merece mais protecção do que a vida.

Em segundo lugar, modifique a epígrafe que fala em crimes contra a vida intra-uterina por uma epígrafe que fale em crimes contra a vida concebida. No próprio articulado, para evitar enganos, diga que é punido "quem por qualquer meio (…) fizer abortar a mulher após a concepção (…)".

Com estas duas propostas, a Mafalda fará um brilharete no seu movimento. Poderá até competir com o pároco de Castelo de Vide pelo título de campeã "pro-lifer".

Já percebi, porém, que a Mafalda não quer ir por esse caminho. Uma réstia de bom senso previne-a de que é má ideia. Essa réstia, assuma-a com coragem, deveria permitir-lhe compreender que a vida intra-uterina não é tão valiosa como a vida de um ser nascido e que a vida intra-uterina tem de ser ponderada no caso de conflito com outros bens jurídicos: a vida, a integridade física, a liberdade e a dignidade da mulher grávida.

É este passo que a Mafalda não consegue dar e lhe provoca vertigens. Compreendo e respeito o seu receio. Mas não venha com a conversa de que a punição da tentativa impossível de aborto não é punível porque a tentativa não é punível, com a conversa de que a pílula do dia seguinte não é crime porque pode ser comprada em qualquer farmácia, etc., etc..

Faço-lhe a justiça, Mafalda, de acreditar que compreende que todos esses argumentos encerram uma petição de princípio. O problema a que não consegue responder é este. Na sua perspectiva, a vida é inviolável desde a concepção e é obrigatório constitucionalmente punir os atentados contra ela. Se é assim, força! Faça campanha contra a pílula do dia seguinte!

[Um comentário mais desenvolvido ao que a Mafalda escreveu está aqui]

o meu sim - pela vida, claro

Inspirada pelo maradona (extremamente inspirada), resolvi também dizer porque é que voto SIM. Recordo agora até que era isso que devia supostamente ser o meu primeiro post, mas varreu-se-me ao ouvir o professor Marcelo (eu sou muito reactiva, que querem).

Vamos a isso, pois.

Voto SIM porque sou pela vida. Pela vida real. Voto SIM porque sou pelas vidas, as vidas das pessoas, concretas e existentes e viáveis, e não por uma ideia abstracta e esdrúxula de vida com maiúscula, uma ideia que pune e persegue e mata e leva à fogueira o que alegadamente quer preservar.

Voto SIM porque acredito que as mulheres – e os casais, e as famílias – devem ter filhos por amor e não por fatalidade ou castigo. Por amor e não por medo de ir parar aos tribunais e às prisões e à exposição pública. Por amor e não por medo de morrer de hemorragia. Por amor e não pela falta de dinheiro para pagar a um talhante (roubei esta ao maradona) ou para comprar duas embalagens de citotec. Já imaginaram a miséria que é ter um filho porque não se teve dinheiro para pagar um aborto? Pois é só por esse tipo de miséria que hoje não se faz um aborto – são esses e só esses os embriões 'salvos' pela lei que existe.

Voto SIM porque ter um filho deve ser um acto de consciência, uma escolha feliz. Voto SIM porque desejo crianças desejadas. Voto SIM pelas grávidas felizes.

Voto SIM porque respeito as mulheres. Voto SIM porque confio nas mulheres. Voto SIM porque o mesmo determinismo biológico que implica que as mulheres engravidem e os homens não, implica que sejam elas a escolher. E porque quero que essa escolha seja digna e dignificada, honrada pela comunidade e pela lei.

Voto SIM por respeito: respeito pelas pessoas que existem e pelas cuja existência se decide. Voto SIM por solidariedade: porque sou e quero ser solidária com essa escolha, como sou e quero ser também responsável por cada criança que existe.

Voto SIM porque quero salvar vidas. Porque quero que haja menos abortos – legalizar o aborto até às dez semanas permitirá saber quantos abortos se fazem, quem os faz e porquê, e identificar formas de combater as gravidezes indesejadas.

Voto SIM porque acrescentar uma alínea de exclusão de ilicitude da interrupção da gravidez até às dez semanas às exclusões já em vigor é não só uma obrigação ética e social como uma questão de lógica jurídica: quem pode o mais pode o menos. Uma lei que permite interromper a gravidez até às 16 semanas se esta resultar de crime contra a auto-determinação sexual e até às 24 semanas em caso de deficiência ou doença do feto já estabeleceu à saciedade que a vontade da mulher – porque é da vontade da mulher que se trata, nesses casos -- prevalece sobre o valor da vida intra-uterina. Falta-lhe completar o corolário dessa asserção, permitindo que essa vontade se possa exercer nas primeiras semanas da gravidez sem ter de ser submetida a cauções exteriores. Uma lei que permite interromper a gravidez de um feto anão ou com trissomia 21 até às 24 semanas e não permite interromper uma gravidez até às dez semanas é uma lei incoerente e mais, é uma lei iníqua.

Voto SIM porque quero uma lei que se possa cumprir e que seja cumprida. Por todas. Por todos.

Voto SIM pela verdade – contra as falsas soluções e os compromissos dúbios, contra os quartos escuros e as contabilidades dos fundos.

Voto SIM porque sou contra a liberalização selvagem do aborto, a que vigora hoje, e a favor da regulação e da transparência.

Voto SIM porque quero deixar de ter vergonha do meu país.